Vinicius Castro
“This álbum is dedicated to dead relatives. They are safe warm and full of happy smiles” – Kurt Cobain (Journals – Riverhead books).
O início da década de 90 foi preenchido por tempos tão intensos para o Nirvana que, embora não enxergássemos isso na época, a certeza de um fim na mesma medida era iminente. Buscar o reconhecimento e passar ileso ao gigantesco sucesso eram vetores que dificilmente poderiam conviver em completa paz.
Época voraz e de alguns avessos. No grunge, bandas que há cinco ou seis anos tocavam para 200 pessoas passaram a ser cogitadas para dividir o palco com gigantes da música em grandes festivais. E aí, de uma hora pra outra, Seattle virou o lugar mais querido do mundo. Ou melhor, Seattle virou O mundo.
Encorajadas pela explosão, e exposição, do rock alternativo, no Brasil, centenas de novas bandas surgiram. Outras já existiam, e ganharam mais espaço para espalhar o que vinham fazendo dentro das garagens.
Havia um certo romantismo em ser parte daquilo. Era bom saber que, nos mesmos botecos e inferninhos, antes dos shows, você encontraria vários grupos de pessoas conversando e descobrindo mais sobre aquela então nova música.
Toda garagem era fértil e a juventude se descobria possível. Aquela nova música deixou de lado solos inundados de notas e cabelos esvoaçantes para dar lugar a recados de poucos acordes e muita, mas muita vida.
Vale lembrar que, nos EUA, depois de Nevermind, segundo disco do Nirvana, um grupo de jovens e suas bandas até então independentes estavam cercados por rios de dinheiro, fama, sucesso, contratos milionários – e eles tinham que lidar com tudo aquilo.
O sucesso do Nirvana deixou a pergunta: Como seria o próximo disco? Eles fariam algo melhor? Seria um Nevermind 2 ou arriscariam algo novo?
Mais rápidos que a possibilidade de uma resposta, eles lançaram Incesticide, coletânea com alguns covers e faixas inéditas. Entre as que ainda não haviam sido lançadas oficialmente, duas eram matadoras: “Aneurysm” e “Sliver”, que já tinha aparecido como single em um compacto e ganhou clipe para promover a coletânea.
Olhando hoje, In Utero, terceiro disco do Nirvana, parece ter sido uma busca por um som mais primal e rude. Na época, as atenções estavam voltadas para a banda, mas ninguém enxergava seus integrantes. Para o público, eram heróis. Para a grande indústria, cifrões.
O nome In Utero dizia muito sobre o estado de Kurt. Um lugar para onde, no meio daquele tumulto todo, faria sentido voltar. E definitivamente, 1993, ano de lançamento do disco, não era esse lugar. Nele o Nirvana viveu 10 anos em 1. Longas turnês, os problemas com drogas, cobranças…
Hollywood Rock, 16 de janeiro, estádio do Morumbi, São Paulo. Primeira vez da banda no Brasil, e em um misto de deslumbramento com estranheza, vimos um Nirvana impacientemente explosivo.
No Rio de Janeiro foram 110 mil pessoas, e isso deixou a banda bem nervosa. Eles fizeram um ensaio de última hora antes do show e, como contou Charles B. Cross, na biografia de Kurt, a mistura de remédios com álcool piorou as coisas e fez com que ele travasse uma batalha intensa com os acordes que pareciam escapar de suas intenções.
Ainda sobre o festival, no show de São Paulo, alguns covers foram inseridos no set list. Teve “Should I Stay or Should I Go”, do Clash; “Rio”, do Duran Duran; “Season in the Sun”, do Terry Jacks; “Kids in America” , do Kim Wilde; além de uma versão do Queen que, na voz de Kurt, se transformou em “We Will Fuck You”. Teve também uns trechos de Aerosmith e Iron Maiden.
O baixista Krist Novoselic definiu aquele momento como uma “crise mental”. Ainda sobre a bagunça que foram aqueles loucos dias no Brasil, em This is a Call, biografia de Paul Brainnigan sobre Dave Grohl, Ian MacKaye (Minor Threat/Fugazi), que veio para nosso país como integrante da equipe do L7, disse: “Fui junto e pensava; ‘Hum, isto é o que não deveria ser feito’”.
O Brasil teve um papel importante na composição de algumas músicas de In Utero. A ideia da banda era gravar umas demos e trabalhar no disco que seria lançado em breve. Isso aconteceu no estúdio da gravadora BMG Ariola, no Rio de Janeiro. O Nirvana gravou sete novas faixas: “Heart-Shaped Box”, “Scentless Apprentice”, “Milk It”, Very Ape”, “Moist Vagina, “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip” e “I Hate Myself and I Want to Die”, além de covers zuera do Unleashed, banda de death metal da Suécia.
Primeiramente, In Utero iria se chamar I Hate Myself and I Want to Die, frase que percorria os escritos de Kurt. Ele chegou a desenhar a capa do disco com riqueza de detalhes, tamanha obsessão que ele tinha para imprimir o título ao álbum. Fez frente e verso em um rascunho com indicações das artes, diagramação dos elementos, e até a posição de cada um dos três na foto.
No mesmo esboço, que foi enviado para o produtor, ele escreveu: “o título é um tanto negativo, mas também é divertido”. Depois disso, o disco teve um batismo de curto período sob o nome de Verse, Chorus, Verse e, finalmente In Utero.
O Nirvana queria um som cheio, pesado e com uma crueza protagonista. Para isso, convidaram Steve Albini, guitarrista e vocalista do incrível Shellac e Big Black, do qual Kurt e Dave eram fãs. Kurt chegou até a viajar horas de ônibus para ver o último show do Big Black, em 87.
Depois de finalizado, a gravadora achou o resultado registrado alcançado por Albini um tanto cru demais e isso poderia tornar o disco menos acessível. Em entrevista, Albini chegou a falar ao Chicago Tribune que a “Geffen e a produtora do Nirvana odiaram o disco…”. Ele ainda completou: “Eu não tenho nenhuma esperança de que ele seja lançado”.
Na época isso circulou por várias publicações, inclusive as sensacionalistas. No press-release do disco, Kurt chegou a declarar que “não houve nenhuma pressão da gravadora no sentido de alterar as músicas”. Mas a treta continuou e Kurt fez com que a DGC publicasse um anúncio de página inteira na revista Billboard negando que o disco tinha sido rejeitado por eles. Mesmo assim, a gravadora recorreu a outro produtor, Scott Litt.
In Utero é áspero, pesado, sem o mesmo apelo radiofônico de Nevermind. Sobre o estado da banda naquela época, Novoselic disse ao New Music Express: “Nós apenas fizemos música. Trabalhamos muito bem juntos, rimos, estávamos concentrados, abertos. E isso realmente aparece no álbum…todos estavam focados e lúcidos. Tenho muito orgulho disso, é um disco lindo”.
Sobre In Utero, Dave diz que gosta “mais dele do que Nevermind porque não houve nada entre a banda e a fita. Nada mesmo”. Dave gravou todas as músicas em apenas três dias. Ele ainda completa: “Não ficamos nervosos para fazê-lo. Tínhamos uma coleção de músicas que considerávamos desafiadoras, interessantes, poderosas e lindas. Aquele álbum é o mais puro que poderia ser”.
Uma entre várias interpretações, coloca “Serve the Servents” como um retrato sem filtro do cansaço da banda frente ao roquinho convencional que esperavam que eles fizessem: Teenage angst has paid off well / Now I’m bored and old (A angústia adolescente pagou muito bem / Agora estou velho e entediado).
Ainda sobre “Serve the Servents”, em Journals, Kurt fez uma anotação tão confusa quanto esperada: “Oh Senhor, culpado do ‘sucksess‘, durante os últimos dois anos eu lentamente cheguei à conclusão de que não quero morrer. Eu agora estou mais recluso do que costumava ser… “
Já “Scentless Apprentience” não nega a vontade de Dave Grohl em querer chegar perto da força das batidas de John Bonham, do Led Zeppelin. É uma música forte, barulhenta e que, em sua versão inicial, passava dos 10 minutos de duração. É a única lançada em um disco oficial que carrega a assinatura de Dave e Krist como co-autores.
Em Cobain Unseen, Charles E. Ross conta que In Utero seria uma volta ao espírito punk. Uma oposição ao approach pop “candy-assed”, nas palavras de Kurt, de Nevermind. Entre as primeiras faixas, estavam “Moist Vagina”, “Dumb”, “Macro Antibiotic”, “Nine Mounth Media Blackout”, e “Heart-Shaped Coffin”, que depois virou “Heart-Shaped Box”.
Assim como o título do disco, “Heart-Shaped Box” também coloca o foco no nascimento, na morte e na sexualidade. Para o clipe, várias versões foram feitas. No início, Kurt queria de qualquer forma que o escritor William S. Burroughs participasse do vídeo. Chegou a escrever para ele, mas Burroughs recusou o convite.
“Rape Me” causou polêmica. Sua “estreia” foi em rede nacional, durante o VMA, premiação da MTV americana. A banda tinha planejado tocar a música na íntegra, mas a emissora não queria que isso acontecesse. Tão logo surgiram os primeiros acordes de “Rape Me” a direção da emissora pediu que cortassem e fossem para um intervalo comercial. Não deu tempo. Kurt cantou somente os primeiros versos e emendou “Lithium”, que foi tocada na íntegra.
Vale lembrar que os primeiros acordes de “Rape Me” foram intencionalmente baseados em “Smells Like Teen Spirit”, coisa que a gente sempre desconfiou, mas não tínhamos a confirmação disso até o lançamento da biografia de Dave Grohl, onde isso foi dito, ou melhor, escrito.
Se em Nevermind Kurt escrevia sobre uma ótica ainda adolescente, falando de sua namorada e amigos, em In Utero a abordagem era mais pessoal, ainda que isso não fosse tão claro.
Em um trecho de uma das nossas músicas prediletas, “Frances Farmer Will Have Her Revenge on Seattle”, a letra diz: I miss the confort in begin sad… she’ll come back as fire and burn all the liars. Algumas publicações dizem que a letra é sobre Kurt despejando sua raiva contra a forma que a imprensa tratou sua família.
“Dumb” é de tom fúnebre enquanto Kurt repete Maybe just happy / Think I’m just happy, como se precisasse desse álibi para conseguir se enxergar “just happy”. Depois dela, “Very Ape”, talvez a mais direta do disco, espalha um mar de fuzz com um andamento linear de verso, refrão e verso.
Em “Milk It” o Nirvana deixa claro sua afeição pelo noise rock encabeçado por bandas como Jesus Lizard. É barulhenta, com a bateria captada sob tensão e arremessada de volta ao ouvinte de forma brutal enquanto Kurt berra o verso look on the bright side is suicide.
“Pennyroyal Tea” foi composta para ser um ato acústico, ao estilo dos Beatles, de que Kurt tanto gostava. Quando pronta, foi eleita por ele como o possível primeiro single. Faria muito sentido. “Pennyroyal Tea” tem aura radiofônica, é formatada no loud quiet loud, estrutura que o Nirvana tomou emprestado do Pixies.
Depois disso, o barulho fica a cargo de “Radio Friendly Unit Shifter” e “Tourette”, duas avalanches de notas simples e fortes, que preparam o terreno para a linda “All Apologies” que nos traz lembranças de um tempo bom, e talvez por isso é quase insuportável ouvi-la em volume baixo. A linha de guitarra é hipnotizante, delicada, e contrasta com a subida do refrão, a tal especialidade nirvanesca. Se a gente pudesse dizer algo sobre “All Apologies” seria “encontrem o seu próprio volume para que ela funcione e emocione”.
In Utero nos ofereceu memórias incríveis. “Sappy” é outra das prediletas aqui de casa. Na década de 90, o Alternative era uma casa onde rolavam bons shows de bandas do underground e a trilha sonora era voltada para o rock alternativo. A primeira vez que ouvimos a gravação mais recente de “Sappy” foi lá. Resultado? Sempre que voltávamos ao Alternative a esperança era de que ela tocasse novamente.
“Sappy” aparece na coletânea No Alternative, registrada com o nome de “Verse, Chorus, Verse”. O disco ainda trazia outras grandes bandas como Soundgarden, Bob Mould, Patti Smith e Urge Overkill, só para citar algumas.
Entre outras gravações que não entraram oficialmente no disco, estava “Moist Vagina”, que a princípio teria o sucinto nome de “Moist Vagina, and Then She Blew Him Like He’s Never Been Blown, Brains Stuck All Over the Wall”; ufa! “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip”, que tem a acidez clássica do Nirvana, mas com um tempero que lembra um pouco as coisas do Pavement; e a ótima “Marigold”, cantada por Dave Grohl.
“I Hate Myself And Want to Die” também foi gravada nessa época. De uma crueza garageira que caberia perfeitamente em Bleach, foi parte do disco The Beavis and Butt-Head Experience, trilha sonora do programa de mesmo nome lançado também em 1993.
Nos dias que sucederam a perda de Kurt, era compreensível que houvesse questionamentos, dúvidas, e uma coleção de “se”, como “se” isso fosse aquietar nosso coração. Mas o tempo, nesses 25 anos, ainda traz uma vontade imensa de ouvir Nirvana. De mergulhar, e tentar entender cada vez mais uma trajetória de acordes poderosos e de uma existência complexa.
O fim do Nirvana vai ficar eternamente ligado à morte de Kurt. Mas como disse David Fricke em um de seus textos, cabe a nós, mais do que lamentar o que perdemos, entender o quanto Kurt conseguiu ceder. E oferecer.
Quando foi lançado, In Utero estreou em primeiro lugar nas paradas e o Nirvana seguiu para uma turnê americana com Kurt dizendo: “Eu nunca estive mais feliz na minha vida”. Pouco depois, o mesmo Kurt curvaria o corpo em seu violão, sozinho, entregue, cercado por lírios brancos, cantando a já citada “Pennyroyal Tea”, durante a gravação do acústico para a MTV. Na percepção de Fricke, ali ele enfrentou o feio, o amargo, o feliz, o triste, o mau, o bom, e a inconstância que acompanhou parte da sua vida.
Em toda sua honestidade, In Utero se despede em um fade out de reticências como se oferecesse diferentes e infinitas descobertas. Como algo vivo em um looping que funciona como um abraço de aconchego. Afinal, all in all is all we are…