A escola é um ponto muito importante da vida. Nela a gente cria laços, desata alguns e permanece ligado a outros que muitas vezes acompanham nossa história por toda a vida. E quando esses laços são fortes, há de se ter uma trilha sonora à altura. Algo que una diferentes frentes que compartilham aprendizados, pensamentos políticos, o amor por algumas bandas em comum e a vontade de construir algo junto. Estes são os pilares do Electric Sickness, banda formada em 1993.
O Electric Sickness é uma banda conduzida por uma postura, não só pela musicalidade. A ideia era protagonista. A música, uma consequência para construir e transmitir algo.
Tendo então o punk como fio condutor e a amizade como um bom roteiro, o Electric Sickness desafiou a si mesmo. Na década de 90, no período adolescente, bater no peito e garantir suas ideias não era lá uma tarefa das mais fáceis. Mas enquanto a maior parte das bandas estava explorando os limites do hardcore veloz, eles optaram por um universo musical mais oblíquo e abrangente, brincando com andamentos menos convencionais e levando a bandeira do punk e do do it yourself em suas letras, postura e discursos durante os shows.
A banda durou pouco, mas tem muita história boa pra contar. E pensando nisso, conversamos com o Electric Sickness em mais uma edição do nosso Sounds Like 90’s, que tem como premissa oferecer um registro carinhoso e prestar um tributo às bandas que a gente viu e ouviu durante a década de 90.
ELECTRIC SICKNESS
1993 – 1994
Guarulhos/ São Paulo
Janaína Veneziani – voz
Kiko Dinucci – guitarra
Luciano Valério – guitarra
Morcego – bateria
Wash de Souza – baixo
* Leia também as edições anteriores do Sounds Like 90’s:
Apoleon
Stand Of Living
Pig Machine
Ground Floor
Sounds Like Us: Quais as lembranças do início da amizade de vocês e da formação do Electric Sickness?
Wash: Eu os conheci [aponta para Kiko Dinucci e Luciano Valério] por causa de um tatuador lá de Guarulhos, o Merpol. Foi no segundo grau. A gente estudava na mesma sala e eu era meio isolado. Os caras no colégio gostavam de dance music, passinho, C&C Music Factory, Bomb the Bass…
Sounds: Bomb the Bass é legal…
Wash: É massa! Mas na época eu queria rock. Quando conheci o Merpol, ele falou: “Ow, conheci um cara que gosta de Fugazi, Rollins Band e ele não faz parte do nosso rolê, então acho que a gente tem que conhecê-lo”. E aí eu conheci o Luciano, o Gui e, depois de um tempo, o Kiko, que fazia parte da mesma crew. Eu sempre via o Kiko passar pra lá e pra cá, andando bangueando, com o cabelão na cara, as mãos no bolso…
Kiko Dinucci: Com a camiseta do Morbid Angel.
Wash: [risos] É. Eu pensava: “esse cara aí curte um som”. Ao mesmo tempo ele me via e pensava: “que cara confuso, Iron Maiden e Sex Pistols” [risos].
Kiko: É engraçado você falar isso porque lembro que uma vez nós fomos na casa do Merpol [Emerson] e ele falou que tinha conhecido o Bebaça [Wash] e pegado uns discos emprestado. Tinha o Ritual de Lo Habitual, do Jane’s Addiction; o Goo, do Sonic Youth, não lembro qual mais, e a gente ficou ouvindo. Eu conheci seus discos antes de conhecer você.
Sounds: [risos] Que legal…
Kiko: Em 1990/91 eu tocava no Necrophobic e os ensaios eram na casa do Cabeça. Era um monte de adolescente vagabundo. Quando os pais dele saíam pra trabalhar a gente fazia um inferno na casa do cara. Arremessava louça um pro outro, abria a geladeira e passava umas coisa na cara [RISOS]. E ninguém usava droga.
Sounds: Quantos anos vocês tinham?
Kiko: Uns 13 ou 14 anos. Ficávamos o dia inteiro na casa do Cabeça ensaiando e zuando.
Sounds: Então vocês já se conheciam bem antes de montar o Electric Sickness.
Wash: Sim. A gente já tinha tocado junto no colégio e eu tinha uma outra banda que chamava Shiva.
Luciano Valério: A minha amizade com o Kiko vem de muito tempo
Kiko: É. A amizade passa pelo skate…
Luciano: Pré-escola mesmo.
Sounds: Quando vocês pensaram em montar a banda já imaginavam que estariam juntos?
Kiko: Não sei. O Lu não tinha banda.
Luciano: O Kiko que me ensinou a tocar. Ele jogou na minha mão uma guitarra vermelha que ele tinha.
Wash: O Kiko gostava de death metal e a gente era mais do punk/hardcore. Aí ele começou a conversar sobre Bad Brains, 7 Seconds e a pegar mais gosto por isso.
Kiko: Eu abandonei o metal de um dia pro outro. Cortei o cabelo, meti uma peita do Bad Brains feita à mão e falei “metaleiro é tudo imbecil”.
Sounds: Você não deu nem aviso prévio?
Kiko: Chegou um dia que eu falei: “mano, vocês ficam ouvindo um monte de banda de gravadora grande, os cara enchendo o cu de dinheiro e vocês aqui no terceiro mundo, em Guarulhos…”
Luciano: Xerocou aquela Sick Boy, [revista] da Argentina e meteu um monte de adesivo na guitarra.
Kiko: Pô, esse zine foi uma grande fonte de informação.
Luciano: Quando chegou a Sick Boy, nossa! Tinha Black Flag, Minor Threat, Bad Brains.
Wash: É uma coisa de tiozão que eu vou falar, mas as coisas pareciam mais interessantes porque te faziam procurar, garimpar.
Sounds: Tinha uma busca. Hoje você recebe praticamente tudo numa newsletter.
Wash: Exato. Você comprava um disco porque gostava da capa ou ouviu alguém falar. Tinha que ser corajoso pra isso. A gente não tinha muita grana e ficava gastando em coisas que nem sabíamos se eram boas ou não.
Sounds: Em que ano foi isso?
Luciano: Ah, 91, 92. Bem comecinho da década de 90.
Kiko: Sobre a formação da banda eu tento colocar uma cronologia. Começa com os roqueiros do CECAP que tinham discos do Dead Kennedys e Suicidal Tendencies. Todo metaleiro gostava dessas bandas. Mas tem um momento interessante. O Tião, do Personal Choice, era um cara bem crossover e eu lembro que ele e uns amigos de escola começaram a ficar mais empolgados com o punk e curtir The Clash. Aí os caras montaram uma banda que chamava ADM (Asmáticos da Mooca). Todos eles eram asmáticos de fato [RISOS].
Sounds: Que história! O nome é perfeito.
Kiko: Eu lembro dessa virada rápida. De andar com os caras, achar o punk mais legal e começar a tocar com o ADM. Quando a banda não existia mais, eu fui fazer uns hardcore com o Tião.
“Você vai num rolê pensando que é o único, mas não, tinha mais um monte de pessoas que pensavam igual a você. Era muito louco isso. Nesse momento rolou uma catarse e todo mundo começou a andar junto” (Wash)
Kiko: Depois disso o Tião chamou os caras do ADM e a gente montou o Clearheads. Isso era antes do Personal Choice. A gente já frequentava alguns shows da banda do Nenê Altro (Dance of Days), o Repulsive. Quando o Repulsive acabou, o Nenê ficou empolgado com a gente. Uma semana depois ele montou o Personal Choice com o que era o Clearheads e ele no vocal. Essas foram as duas primeiras bandas de punk do CECAP. Mas eu gostava de Pixies, Sonic Youth e o Bebaça me influenciou muito nessa parte. Lembro que ele comprou o primeiro EP do Sonic Youth e veio um catálogo da SST e a gente “meeeeu, na verdade, o que a gente gosta tá aqui!!!!”
Sounds: Foi nesse ponto que ocorreu o encontro do gosto de vocês pelo mesmo tipo de som?
Wash: Acho que não só o nosso, mas o gosto de mais um monte de gente.
Sounds: Sim, porque realmente foi uma época de muita descoberta. De repente um monte de gente tava curtindo as mesmas coisas…
Wash: Tudo ao mesmo tempo. Era incrível como tinha uma pessoa aqui, outra ali, outra no interior ou na zona sul, que tava ouvindo coisas parecidas e a gente de repente se conheceu não sei onde.
Kiko: Na Juventude Libertária.
Wash: Isso. Você vai num rolê pensando que é o único, mas não, tinha mais um monte de pessoas que pensavam igual a você. Era muito louco isso. Nesse momento rolou uma catarse e todo mundo começou a andar junto.
Luciano: A gente se conectou muito por causa do punk mesmo, mas também ouvíamos outras coisas. O Bebaça foi o primeiro cara que eu vi com uma coleção de discos muito foda, de coisas que não tinham nada a ver com o punk.
Wash: O próximo passo foi ver quem tinha afinidade com algum instrumento e era meio que “ow, você toca alguma coisa?”
Sounds: Vocês queriam tocar de fato.
Wash: No começo as pessoas só queriam estar juntas curtindo o som. Depois que veio essa ideia de montar uma banda.
Luciano: Antes do Electric já tinham aparecido umas bandas: Clearheads, Personal Choice, Positive Minds, No Violence.
Sounds: A primeira gravação de vocês foi a demo ou o compacto?
Kiko: Foi junto. A gente gravou o compacto e outras três músicas a mais pra virar a demo.
Sounds: Perguntamos isso porque no compacto as outras bandas estavam focadas em um som mais rápido. Como vocês enxergam o som que o Electric Sickness fazia nos anos 90?
Jan: Gostávamos muito de Sonic Youth e sabíamos que eles tinham umas músicas antifascistas. Tinha influência do hardcore e punk, mas a gente não queria fazer esse tipo de música.
Luciano: A gente tinha uma conexão com essa galera.
Wash: Isso era o que dividia o nosso grupo da galera de Pinheiros.
Luciano: Mas essa divisão veio depois. Na época do Electric Sickness a gente tinha referência das bandas de Pinheiros. Tinha o IML também, que já era uma outra coisa, mas eles nem eram de Pinheiros. Os caras gravaram uma coletânea que tinha o Kangoroos In Tilt, e eles tocando berimbau.
Sounds: Era outra coisa mesmo, bem diferente.
Kiko: O Vesgão (IML) era presente. Era um cara que a gente encontrava sempre.
Wash: Acho que ele fazia parte desse grupo também, da Juventude Libertária.
Jan: O grupo anarquista de que a gente participava queria ter bandas em todas as frentes. Um coisa parecida com o Chumbawamba, que fez dance music falando de anarquismo, questões sociais e até ficou famosinho. A gente entendia que a música era um veículo e que poderia ter vários estilos musicais. Pra nossa surpresa, o Electric foi muito bem aceito no meio que a gente andava porque só tinha o hardcore e o punk pra falar daqueles assuntos e uma galera não se sentia identificada. Era sempre aquela coisa Nova York, todo mundo violento, tretando, e o Electric era uma banda sussa. A gente ia tocar, galera ficava dançando, mas a letra estava falando sobre o mesmo assunto. Acho que a gente acabou criando um nicho divertido porque no nossos shows tinha público anarcopunk, punk, straigh edge, hardcore, tudo misturado e curtindo uma banda de guitar. A gente não queria ser comercial, mas sim fazer algo diferente.
“Eu não me via como menina. Nessa época eu me via mais como mais um dos meninos. Em qualquer esfera da sociedade a gente sempre vai ter que brigar por isso, mesmo falando do universo alternativo. Não é porque era alternativo que era diferente” (Jan)
Sounds: Vocês não estavam tocando rápido, nem tão melódico, nem tão guitar band. Onde vocês estavam?
Wash: A base é isso aqui [mostra o LP My War, do Black Flag].
Luciano: Foi quando pensamos em fazer um lance mais Black Flag. Antes era mais guitar. A gente queria uma coisa mais quebrada, colocamos uma mina no vocal. A Jan entra nesse momento.
Sounds: E como foi a sua entrada, Jan?
Jan: A banda já existia. O Electric Sickness era formado por pedacinhos de outras bandas. Eu não lembro direito, mas acho que no início o Bebaça cantava. O Lu tocava baixo, mas ele também tinha o Personal Choice, Clearheads e outras bandas. Eu não lembro de quem foi a ideia. A gente tava ensaiando e alguém perguntou se eu não queria cantar na banda. Fizemos uns ensaios e rolou. Foi bem espontâneo. Eu tinha estudado canto, mas nunca tive a pretensão de ter banda. O Electric já era deles, as letras já estavam prontas, os arranjos também, então fui mesmo só pra cantar. Depois com o tempo foi tendo mais a participação de todos.
Kiko: A gente gostava de Babies in Toyland, Pixies e Sonic Youth, estas últimas tinham a Kim Deal e a Kim Gordon. O Bebaça já gostava da PJ Harvey, então a gente já simpatizava com a coisa do timbre feminino.
Wash: Aqui tinha o Abuso Sonoro.
Sounds: O No
Sense também.
Wash: Verdade. E o Volkana [risos].
Sounds: Jan, é inegável a força e insistência que as mulheres tiveram que ter pra conquistar um espaço merecido na música underground. Eles mencionaram algumas garotas que tocavam em bandas nos anos 90, mas ainda assim esse número era pequeno. Como foi pra você conquistar esses espaço?
Jan: Eu não me via como menina. Nessa época eu me via mais como mais um dos meninos. Em qualquer esfera da sociedade a gente sempre vai ter que brigar por isso, mesmo falando do universo alternativo. Não é porque era alternativo que era diferente. Na época a galera tratava como uma coisa de fetiche. “A menina que canta tem que ser gatinha, mostrar as pernas, fazer umas jogadas de cabelo…”. E a gente fazia um lance performático mesmo e estávamos cagando pra isso. Os meninos mesmo nunca me trataram diferente. Pra mim era uma banda de música e o fato de eu ser menina era só porque eu SOU menina.
Sounds: Tinha o lance do timbre também, né?
Jan: A voz dava um toque mais melódico. O que aconteceu de legal é que a gente começou a ver menina tocando baixo, guitarra, sendo vocalista. A gente conheceu umas coisas interessantes. Muita coisa vinda do interior. A galera tinha um tesão de formar banda. O lance de ter banda só de menina mesmo, do empoderamento, veio depois, com o Dominatrix.
Sounds: Como você sentia essa diferenciação entre homens e mulheres naquela época?
Jan: Antes disso era muito espaçado. Cada menina no seu cantinho. Era um meio muito macho, então a menina tava sempre lá segurando a mochila do namorado pra ele entrar na roda de pogo.
Sounds: E hoje? Como você enxerga isso?
Jan: O melhor jeito de você mudar as coisas é fazendo. A gente entrava em roda, dançava do jeito que queria, tocava, cantava. A gente ia lá e fazia o que tinha vontade. O meio do hardcore era machão até que apareceu o emo e o hardcore melódico. Aí o pessoal começou a abrir mais a cabeça pra falar de outros temas que não fossem coisas pesadas.
Sounds Like Us: Como era a distribuição das demos do Electric Sickness? Pra quem vocês entregavam, onde vendiam…
Kiko: Era engraçado quando as fitas começaram a ser gravadas e reproduzidas até chegar na mão de alguém que a gente odiava.
Sounds: Como eram os shows de vocês? Teve algum deles que marcou mais?
Jan: O show que eu tenho mais carinho de lembrar foi um que a gente fez no Ovelha. Era um salão de cabelereiro enorme que tinha na região da Tiradentes, onde começamos a fazer shows de coletivos de bandas. O público era todo misturado e a nossa meta era desmantelar aquele negócio de gangue que tinha em São Paulo. A gente queria tirar a molecada de gangue pra fazer algo como ajudar outros grupos, fazer zines, shows e que essa galera parasse de brigar na rua. Fazíamos questão de propagandear ali pelo centro, Galeria do Rock, justamente pra atrair essa molecada. Esse show do Ovelha tava bem cheio, público misturado e todo mundo numa boa. Não teve uma briga e um show sem briga, naquela época, era uma coisa rara. Acho que por eu ser menina dava uma quebrada naquela coisa machão. Eu fazia umas danças esquisitas no palco e virou meio que um estilinho, a galera gostava. Porque a gente não se pautava em parecer X ou Y, era um negócio nosso. Às vezes recitava poesia, explicava as letras pra galera entender que estávamos falando dos mesmos assuntos e isso atraía diferentes tipos de pessoas. Eu lembro que eu olhava pro público e pensava: “Se tem uma coisa que eu gosto é isso! Todo mundo misturado”.
“Eu sempre enxerguei o punk como norte, mas um punk que poderia se abrir. Tudo era punk. Tocar grind ou rock alternativo. Isso até fugiu do meu controle. Comecei a ouvir Caetano Veloso e a galera falava que eu tava muito doido.” (Kiko)
Sounds: E quem eram as bandas que costumavam tocar com o Electric Sickness?
Kiko: Tudo banda de hardcore. Positive Minds, Personal Choice…
Wash: Tinha umas variáveis. O Necrorrosion, que era uma banda de death metal anarquista. O Ínfame, banda de grindcore de Araras também.
Kiko: A gente tocava com o ROT também.
Wash: Tudo o que abraçava sons anarcos.
Kiko: [Luciano mostra umas fotos] Isso é no Woods Bar, daquele show que apareceu no Youtube aí.
Sounds: Era mais a postura do que só a música?
Wash: Isso.
Sounds: Isso é uma coisa legal, porque ao mesmo tempo que começou a se quebrar paradigmas e misturar alguns estilos, às margens, a primeira metade da década de 90 ainda sofria um pouco com as “caixinhas”. Quem era punk tocava com punk. Os góticos só com góticos, metal só tocava com metal…
Wash: O Kiko quebrava um pouco isso porque ele tocava com a gente, mas também com banda de grind. Ele tinha o No Conformity e o Baby Face, que era uma banda com o Nenê.
Sounds: Era uma necessidade de se misturar, de se encontrar ou simplesmente vontade de fazer parte de outros estilos que vocês também ouviam? Algo como “eu não ouço só metal ou só punk, então também quero experimentar outros estilos”…
Kiko: Eu sempre enxerguei o punk como norte, mas um punk que poderia se abrir. Tudo era punk. Tocar grind ou rock alternativo. Isso até fugiu do meu controle. Comecei a ouvir Caetano Veloso e a galera falava que eu tava muito doido.
Wash: [risos] Quando ele começou a ouvir essas coisas a galera ficou preocupada: “caralho, ele tá ficando muito maluco, mano!” [risos].
Sounds: E a turnê em Londrina? A gente sabe de umas histórias aí… Falem um pouco sobre isso.
Wash: Eu acho que foi a viagem mais longa que eu fiz sozinho, sem estar com família e tal. Londrina parecia longe pra caramba. Esse show foi com o Clearheads, Personal Choice, Culto ao Ódio e a gente. Tinha um busão fretado com umas trinta pessoas e a recepção foi bem “calorosa” [risos]. Kiko: Arrumamos uma briga lá. A gente chegou tirando todo mundo de playboy e tinha um punk de moicano, que dirigia um Ford Escort.
Wash: “O que que é isso, o que tá acontecendo? Como o punk rock funciona na cidade de vocês aqui?”
Kiko: Chegamos causando mesmo [risos].
Wash: Tudo começou porque não tinha lugar pra ficar e combinamos de dormir no estacionamento mesmo. Seria muito mais fácil a gente levar um pau se nos separássemos do que se estivéssemos todos juntos. Na hora da primeira refeição tinha uma panela de macarronada lá com um “temperinho” de laxante no molho [risos]. A maioria ficou bem zuada todo o resto do dia [risos]. Tinham uns panfletos que o Nenê imprimia. Eram bem Jello Biafra: “Quer um cérebro? Cérebros grátis aqui… Cérebro? Você ainda pode ter um!” A gente distribuía isso no rolê e geralmente os caras ficavam “você tá dizendo que eu sou burro?” E aí pronto, começavam as tretas. Nos cartazes também vinha escrito “dança violenta não é permitida”. Bem Jello Biafra mesmo. A curtição era fazer umas danças pulando pro alto, meio teatral, nada de machucar o amiguinho do lado [risos].
Wash: A gente tinha muita raiva, eu particularmente, de rolê metal porque a galera não sabia brincar. E depois isso se voltou para o hardcore. Também teve um mano de moicano lá que deu uns empurrões no Lu e o Kalota só sacando de fundo. Aí o cara deu um pra machucar mesmo. O Kalota veio e derrubou o cara [risos]. Começou uma confusão geral, ficamos presos dentro do galpão e os caras do lado de fora querendo matar a gente.
Kiko: Foi o Gargamel que apaziguou. Era um cara de Piracicaba, mais velho, da primeira geração da punk e que também sabia tudo de metal. Ele meio que cuidava da gente nessas coisas de treta.
Kiko: Teve aquele show na SOMA lá, dos anarcopunks. Foi bem louco. A Jan lendo uns poemas ao contrário.
Jan: Eu não lembro de muita coisa desse show. Só sei que foi uma coisa bem caótica. Isso que eles falaram, das poesias, eu lembro vagamente. Mas eu acho que foi nesse que a gente ganhou os anarcopunks. Muitas das pessoas que a gente andava eram os caras antigos desse grupo, mas pra eles a gente era uns playboy, não iam com a nossa cara. Tinha sempre uma richinha, e nesse show ela se quebrou. Eles viram o que a gente tava falando e começaram a gostar da banda.
Kiko: Eu lembro de conversarmos que dava pra fazer um som alternativo sem ser guitar band, puxado pra uma coisa mais esquisita.
“Tinham uns panfletos que o Nenê imprimia. Eram bem Jello Biafra: ‘Quer um cérebro? Cérebros grátis aqui… Cérebro? Você ainda pode ter um!’ A gente distribuía isso no rolê e geralmente os caras ficavam ‘você tá dizendo que eu sou burro?’ E aí pronto, começavam as tretas” (Wash)
Sounds: Tudo isso foi uma grande descoberta pra quem viveu aquela época, né? Saber que você poderia fazer uma coisa agressiva sendo melódico.
Kiko: Foi. Tínhamos acabado de ver o Rollins Band, no M2000 Fest, em Santos. Conectamos isso com a fase mais esquisita do Black Flag e começamos a chamar de “som nóia” [risos]. No Means No, Minutemen… Era tudo som nóia.
Sounds: Sonoramente, o Electric Sickness, apesar da pouca duração, foi por um caminho evolutivo. Dá pra perceber várias referências de outras bandas ali, mas tudo meio contemporâneo com o que tava rolando.
Wah: Eu acho que era a banda mais diferente do compacto.
Kiko: Eu lembro que quando fui pra bateria, meu desafio era não repetir as mesmas batidas dos outros caras. No compacto você vê que tá todo mundo num lance rápido enquanto a gente chegou com uma coisa mais [imita a batida com a boca] mais Red Hot Chilli Peppers, Minutemen…
Wash: E ao mesmo tempo tinha umas notas desconexas. Era bem diferente mesmo.
Kiko: A gente tava começando a ouvir jazz nessa época.
Sounds: E como era o jeito que vocês compunham? Era pensando em outras bandas? Era algo que surgia de jam session ou tinha alguém que sempre trazia novas músicas?
Kiko: Cada um chegava com uns riffs mesmo.
Luciano: Tudo o que eu aprendi foram vocês [Kiko e Wash] que me passaram. Põe esse dedo aqui, essa base é assim e tal…
Sounds: Do it yourself mesmo, né?
Luciano: Total.
Wash: A gente ensinava o Lu, mas também mal sabíamos tocar direito.
Luciano: Pra mim era uma coisa muito gráfica, sabe. Tocar as músicas era um lance meio de olhar e ver aquele desenho e saber pra onde eu tinha que ir.
Kiko: A música desse compacto foi um divisor de águas para que gente viesse a fazer outras coisas que nem sei se foram documentadas.
Sounds: O que vocês queriam, e o que realmente conquistaram com o Electric Sickness? O que a banda ensinou a vocês?
Kiko: Acho que a maior conquista é o estilo de vida que continuamos seguindo. Porque curtindo essa quantidade de bandas mais esquisitas, a gente teve a oportunidade de olhar outras coisas. Música africana, jazz pra caralho.
Jan: O Electric me ensinou que tem que ter coragem pra fazer as coisas que a gente quer e acredita. E se a gente não for bom em uma coisa, fazemos até ficar bom. Hoje eu sou professora, trabalho com design. Sempre fui das artes. Sempre fui ver banda independente. Tudo isso começou com a gente junto, trocando fita, vinil, conversando. Ninguém de nós nasceu sendo músico, mas hoje você vê, o Kiko é um multi-istrumentista muito bom. Os meninos têm as bandas deles, o irmão do Lu [Guilherme Valério] e tudo começou ali. Nós entendemos que potencial artístico não é só a quantidade de aulas que você faz pra tocar um instrumento. É a tua vontade. É tudo o que você pode fazer. Me ensinou também a me expressar mais do que só falar o que penso. A traduzir o que eu sinto e passar pra frente.
Wash: Pra mim, provavelmente foi um desprendimento do senso geral do que era considerado legal ouvir ou não. Isso deixou de existir nesse momento.
Jan: Me ajudou também a entender melhor a cabeça do jovem porque, puuuutz, a gente fez tanta loucura. O lance de se expressar e fazer isso em mídias que poderíamos escolher. Seja artes, música, design. O lance de performance, pra mim, abriu umas portas da mente. De chegar lá, se soltar e fazer o que tivesse vontade sem muito rótulo. O Electric mostrou que a gente se prendia muito a rótulos e isso atrapalhava. Até hoje, né? A galera se coloca num rótulo e não se permite.
Sounds: E vocês devem ter frustrado muitas pessoas com essa postura?
Wash: Ah, provavelmente. As pessoas que tocavam comigo antes sim, porque eu parei de tocar com eles…
Kiko: Saiu do Shiva [risos]
Wash: Não tinha como. Era uma banda de cover. Aquilo só me ajudou a aprender a tocar. Eu não tinha mais função ali. Não me via mais naquele rolê e isso muda não só você, mas as outras pessoas também. Aliás, é até oportuno falar isso. Recentemente, o cara que tocava comigo no Shiva retomou contato pelo Facebook, mas ele é uma outra pessoa completamente diferente. Reaça, falou uma pá de besteira. A última vez que conversamos eu disse “cara, desculpa, há 20 anos não nos falamos e a gente não tem nada em comum, NADA!”.
Wash: Quando eu comecei esse rolê [com o Electric Sickness], foi outra página da minha vida que escrevi. Parece pouco, uma coisa inofensiva, mas eu sou o que eu sou hoje por causa do momento em que os encontrei. Minha concepção de mundo mudou. Vocês lembram daquela passeata que tinha um italiano aqui, e toda aquela tensão, mas quando tudo passou eu pensava “cara, é isso que minha vida é, andar de contra a maré”.
Sounds: E você encontrou e se juntou a pessoas com as quais você poderia fazer isso.
Wash: Sim. Mas obviamente que no futuro você vê que não dá pra andar completamente contra a maré porque eu não tenho tendências pra ser hippie. Nada contra o estilo de vida deles, mas você acaba se enfiando dentro do estilo capitalista em que é obrigado a viver. Eu fico às margens mesmo.
Sounds: É uma resistência dentro do sistema.
Wash: Sim, a gente acaba fazendo isso pro resto da vida.
Jan: Também tem o lance de comunidade, de fazer algo juntos. Eu conversava com muita gente, trocava muita carta, gravava demo, mandava. Não ficávamos presos. Hoje tem uma puta dificuldade das pessoas conviverem até no Facebook [risos].
Sounds: Quanto tempo durou o Electric Sickness?
Wash: A banda não durou muito, sabia? Um ano só, mais ou menos. Porque eu e o Kiko já começamos uma outra parada com o Nino (Eu Serei a Hiena) que já era uma outra direção.
Kiko: Eu falei pros caras: “eu sou adolescente, quero viver a minha vida, chega de regra, de dogma, não aguento mais, quero beber, transar…”. Não fiz nada disso, continuei cinco anos travado [risos]. Deveria ter feito análise na época [RISOS]. Tem uma história ótima. Quando nós montamos o Nitrate Kid [banda que surgiu com o fim do Electric Sickness] a gente tava de saco cheio dos rolês Straight Edge. Eu já tinha meio que pedido as contas.
Wash: Eu nunca fui.
Kiko: Conversei com o Bebaça pra gente montar uma outra banda que fosse estranha mesmo e que não tivesse nada a ver com esse rolê. Aí surgiu o Nitrate Kid, que era com o Nino, que tinha sido expulso do Positive Minds porque tinha comido PRESUNTO! [risos]. Ele tava excluído e a gente ficou com uma puta dó do cara sendo tratado como leproso da época medieval porque botou um presunto na boca [risos]. A gente achava que ele tocava legal, acima da média, e aí montamos um trio. Nessa fase ouvíamos muito fIREHOSE e queríamos uma banda assim.
Wash: Mas no primeiro ensaio a gente se olhou e “vamos tocar o quê?”. E o único disco que os três manjavam era o Repeater, do Fugazi. E aí, sem ensaio, a gente tocou o disco inteirinho.
Sounds: De tudo o que vocês contaram, a impressão é de que a banda girou mais em torno da postura e identificação com o punk, e da amizade de vocês, do que somente da música.
Kiko: É isso.
“A gente se conectou muito por causa do punk mesmo, mas também ouvíamos outras coisas. O Bebaça foi o primeiro cara que eu vi com uma coleção de discos muito foda, de coisas que não tinham nada a ver com o punk” (Luciano)
Sounds: Dá pra falar que vocês são uma banda que não acabou. O Electric Sickness teve um fim, mas vocês continuam juntos. Vocês lembram os motivos que levaram a pausa da banda?
Kiko: Eu lembro bem. Pra mim foi o afastamento do Straight Edge.Eu saí de todas as bandas.
Wash: O Electric Sickness só parou porque passamos umas semanas sem ensaiar [risos]
Kiko: Nós nunca sentamos e dissemos “acabou”.
Wash: O Electric foi interessante porque a gente já tava dentro de um círculo que era marginal. E dentro dele a gente criou um outro círculo mais marginal. A gente nunca quis fazer algo igual a nada. NUNCA igual. Tinha que ter personalidade.
Kiko: Acho que a banda foi isso: um empurrão pra vida. Pra gente ser tudo o que a gente é hoje.