O do it yourself sempre manteve os princípios de punk/hardcore intactos e robustos. Em certos casos, a amizade também entra nessa equação, resultando em um dos braços mais inclusivos da arte: a música.
O Pig Machine é um desses casos. Três amigos de São Paulo que, mais de 20 anos depois, construíram laços ainda mais fortes. E muito além de fazer o som de que gostava, cada um dos três trazia, entre suas vontades, o prazer de estarem juntos.
Você vai se deliciar com essa entrevista. A história do Pig Machine é cheia de encontros, desencontros, risadas, diversão, atitude e esbarrões no sucesso. Você vai entender como os caras perderam a chance de estourar para o Raimundos, como foi o show em uma festa fechada para o Exploited e pasmem, o convite para tocar no Der Temple para ninguém menos que Kurt Cobain, Courtney Love, Flea e para as garotas do L7.
Esse é o Sounds Like 90s em mais um registro da saudosa e efervescente música que ocupava nossos dias lá na década de 90. Um registro em que a gente se sente feliz e realizado. Mais um capítulo de uma história que merece uma documentação cuidadosa e carinhosa. Porque essa história também é nossa. É de todos. É a história da nossa música.
Sounds Like Us: Contem pra gente como foi o início do Pig Machine, quem teve a ideia de montar a banda…
Fábio: Eu e o Glauco que começamos a banda.
Glauco: Foi um período deprê. Nós tínhamos acabado uma banda em que a gente gostava muito de tocar.
Fábio: Que era o Apoleon.
Glauco: Acho que foi uma atitude meio reativa: “vamos fazer uma banda de hardcore e foda-se se vai ter coisa trampada ou não!
Fábio: Foi engraçado porque a gente tocava thrash metal trampado pra caralho e aí decidimos fazer o oposto com o Pig Machine. Fazer o mais simples possível. Era todo mundo cabeludo. Raspamos a careca e ouvíamos Pennywise, Bad Religion… o que mais que a gente ouvia?
Glauco: Ah, Minor Threat, GBH, Exploited…
Sounds: E essa mudança de uma música mais trabalhada para algo mais direto foi somente com base no que vocês estavam ouvindo? Novas descobertas…
Glauco: Foi, novas descobertas. No final das contas foi meio que uma libertação. A gente pôde conhecer ainda mais sobre o hardcore, porque até então éramos limitados. Pendemos pro hc porque é uma música que tem muita energia e arrepia os pelos até hoje.
Fábio: Manja escola literária em que uma ia contra a anterior? Nós fizemos isso. A gente saiu do Apoleon, que era thrash trampado, e fomos pro simples (risos).
Sounds: E você, Z, também tá desde o início na banda? Na sua visão, como foi esse começo?
Z: Eu tava começando e era paga pau do Apoleon. Lembro que a gente tava batendo um papo na casa do Glauco, que eu tinha acabado de conhecer, e ele falou que queria montar uma banda de hardcore. Lembro que eu falei pra ele “Glauco, eu toco mais ou menos, cara”. E ele: “para o que a gente precisa você manda bem”. E aí a gente começou. Uma coisa legal da época é que muitas das bandas de hardcore vinham com um som de guitarra mais limpinho. E eu como gostava muito de metal na época, na verdade eu queria tocar metal, coloquei uma guitarra bem distorcida e suja. Acho que os dois foram os mentores do lance, mas a minha contribuição foi de vir com um jeito de tocar guitarra que não era o que tava rolando na época.
Sounds: Você acha que esse tipo de som era diferente tanto no Brasil quanto fora do país?
Z: Isso. Lá fora, mas as bandas daqui já estavam fazendo isso. O próprio I.M.L já era assim.
Glauco: O Z jogou fácil. Chegou e a coisa não enroscou em nada! Eram três notas e vamo pro pau. Por isso que foi legal pra cacete.
Sounds: Naquela época o bairro era o país, o mundo, a cidade de muita gente, né. A locomoção era pior e também rolava uma dificuldade de sair do “gueto” para ver e conhecer outras bandas. Vocês tinham noção do que rolava fora da zona leste?
Jo: Tínhamos.
Z: A gente começou e já saiu fazendo show, e isso rolava muito na época. Porra, o Der Temple! A gente tocava lá umas seis vezes por mês, cara.
Glauco: Era a banda da casa. Lembro que o Bóba, pô, inesquecível, volta e meia ele ligava pra gente quando faltava banda lá porque ele sabia que era só chamar que a gente tocava. E tinha o No Violence, o próprio I.M.L, Primal Therapy. Era meio a panela da época mesmo. O Megaforce começou fazendo um crossover e também pegou um pouco dessa leva.
Sounds: Em que ano era isso?
Glauco: Era 92. E o Megaforce pegou esse embalo. Fizemos shows com eles na época do Apoleon, e com o Pig Machine também. Meio que formamos uma panela mesmo, de sete ou oito bandas. E tinha também as bandas de fora da cidade. Naquele tempo a gente conversava trocando zine, demo. Lembro do BSBH, pessoal do Explicit Hate, do Rio de Janeiro, que pra mim é uma banda que, se fosse gringa, ia ser cultuada até hoje.
Sounds: Esse contato era via carta porque era o que tinha naquele tempo. Parece redundante sempre as bandas mais antigas baterem nesse ponto, mas é que é muito louco você pensar que essa fase, sem o tipo de comunicação rápida que temos hoje em dia, era coisa de 30 anos atrás, né?
Z: Eu vou contar pra vocês uma história legal sobre esse lance de comunicação. A gente gravou uma música que chamava “A do Gato”, a única em português. Era despretensiosa, uma puta zuera mesmo. E na demo, tinha o meu telefone pra contato. Aí eu tô em casa um dia e me liga o Miranda. Aí ele fala “cara, queria colocar vocês na revista Bizz, dá pra você me trazer uma foto?” E eu falei que dava. Fui porra nenhuma, porque era lá na Marginal. Aí ele me ligou de novo “dá pra trazer uma foto?” E eu: “dá”. Não fui de novo (risos). Aí ele ligou uma terceira vez e eu fui lá levar a foto. Ele colocou a gente na Bizz como letra do mês e o caralho. Nisso, o Vesgão do I.M.L tinha levado a demo de uma banda num ensaio pra gente ouvir. “Olha esse negócio, os caras misturam forró com hardcore, são lá de Brasília”. Era a demo do Raimundos. Não nos falamos mais e aí lançaram o Raimundos. Um tempo depois a gente soube que o Miranda já tava de conversa com os caras do Titãs pra criar o selo Banguela e eles queriam uma banda que fizesse um hardcore falando besteira. Tanto que, na primeira demo do Raimundos, tinham três músicas só. Se você pegar o primeiro disco do Raimundos, vai ver que quase todas as músicas são de domínio público. Eles tinha só aquelas três músicas da demo e o Miranda achou o que ele queria, que é o que ele viu na nossa “A do Gato”.
Sounds: Glauco, tinha alguma relação com o comecinho do straight edge?
Glauco: Não. Eu era mais punk mesmo. Raspava careca e a gente conhecia meia dúzia de careca que andava aqui na praça.
Sounds: E como era a relação de vocês com os outros movimentos? Porque a gente sabe que tudo era bem mais dividido, mas nessa fase, comecinho dos anos 90, apesar de começarem a pipocar mais misturas, o lance ainda era fechado em determinados grupos. Em relação aos góticos, punks, metal, como era a conversa de vocês com esses outros grupos?
Glauco: Vividos alguns anos depois, vou te falar, era bem mais legal. Porque a treta era com careca, com punk e com gótico. Hoje você só precisa do metal pra ter treta. “Ah porque o metal A não gosta do metal B, porque o black metal não gosta do hard e o death metal não curte o outro…”. No final das contas, correr de careca era mais legal. Onde tinha careca era careca. Onde tinha cabeludo era tudo metal, seja Venom, Judas Priest e até os crossover tipo D.R.I, S.O.D. Pô, ouvir S.O.D fez brilhar meus olhos. Abriu um mundo pra mim.
Sounds: Você acha que isso foi uma espécie de sementinha para o Pig Machine?
Glauco: Ah, a gente tava ouvindo muito Misfits também, muito Ramones.
Fábio: No início as influências do Pig Machine foram Ramones, Misfits, Bad Religion e Pennywise.
Sounds: Como era o processo de divulgação de vocês? Venda das demos ou mesmo fazer contatos para que o público conhecesse mais do Pig Machine.
Fábio: Dia 20 de dezembro de 92 a gente gravou a primeira demo. Tudo ao vivo.
Z: Ouvido sangrando…
Sounds: Sério?
Z: É, eu tava com um problema lá.
Fábio: E depois a gente ia lá na Galeria [do Rock, em São Paulo] e deixava as fitas em algumas lojas pra vender. Lembra do Nunes? (risos)
Sounds: Sim. Era a loja perto da primeira escada rolante, vindo pela entrada da 24 de maio.
Jo: Ele tá lá até hoje, acho. Deixava umas cinco demos lá.
Glauco: A gente dava muita demo também. Circulava com uma caixinha de fita na mão e dava pra alguém que perguntasse e que a gente sentisse que gostava do negócio. Demo e flyer, com endereço pra mandar carta.
Sounds: E vocês recebiam muita carta?
Glauco: Muuuuita. Do Brasil inteiro.
Sounds: Ah, que legal. A gente fala com uma galera hoje em dia que ainda lembra do Pig Machine. E não são pessoas próximas como amigos ou amigos de amigos. Vocês imaginavam que o som de vocês estava chegando em lugares mais distantes?
Jo: O Pig Machine nunca tocou fora de São Paulo.
Sounds: Como vocês recebiam cartas de outras cidades? O pessoal ia espalhando no boca a boca?
Fábio: Saía na Rock Brigade, na Top Rock, Bizz e a gente foi na 89FM, nos programas A Vez do Brasil, que era do Tatola; e no Comando Metal, apresentado pelo Walcir.
Z: Era tudo com a demo. A que chegou no Miranda foi por meio de um cara do Okotô, não me lembro o nome dele. A gente tocou na frente da Woodstock.
Sounds: Então, íamos chegar aí. Rolavam esses shows organizados pela loja mesmo, o que era bem legal, né? A gente viu Zero Vision, Sigrid Ingrid, Genocidio, teve muita coisa. Como foi o show de vocês lá?
Z: O Okotô que fechou.
Glauco: E teve um Flame não sei das quantas. Os moleques eram todos ruívos e a banda chamava Flame alguma coisa [RISOS]. A gente tava bêbado… [RISOS]. Foi um dia memorável.
Z: Agora, se você perguntar como a gente chegou lá, como convidaram, eu não vou saber te responder.
Glauco: Eu sei dessa história. O Rodrigo, amigo nosso e que na época tocava no Megaforce, namorava uma menina que agilizou com o Walcir. Ela tinha uns contatos, participava da seleção das bandas e colocou a gente pra tocar.
Z: Cara, quando terminou a gente ficou lá dentro, teve até autógrafo e fila dos caras querendo comprar nossa fita. Isso era foda para as bandas.
Sounds: Quando aconteceu isso vocês chegaram a pensar “agora a gente deslancha”?
Z: Nós nunca pensamos nisso.
Glauco: Ainda não foi nesse momento. Era só for fun.
Sounds: Nem quando estourou o Raimundos, o lance do Miranda…
Glauco: Eu acho que a ficha pra gente caiu tarde. Como o Z falou, os caras ligavam e a gente falava “ah, beleza”, mas não demos a devida importância. Quando deu o estalo, que inclusive entortou o caminho da banda, já tinha passado isso. Já tinha banda de hardcore na MTV, tinha uma ceninha iluminada, entendeu? Tinha passado.
Sounds: Tinha passado porque vocês não estavam alinhados com aquele momento e com aquele tipo de exibição na televisão?
Glauco: Não demos a devida atenção. Nunca respondíamos as cartas, não retornávamos as ligações de fãs querendo comprar a demo.
Z: Tava no começo do negócio. Se a gente tivesse encarado de outra forma, eu acho que a gente teria se dado muito bem porque éramos forte dentro daquela cena. No Der Temple todo mundo ficava na porta ou espalhado pelo lugar. Uma amiga falou que quando começávamos a tocar, todo mundo falava “o Pig Machine é foda, vamo”. Até o Gigio, o dono do Der Temple, ia ver. A gente tinha um show gravado com o João Gordo agitando no meio do público. Depois ele veio falar com a gente e tal.
Glauco: Show vazio a gente só fez um, com o Genocidio. Eram nossos amigos, mas era metal e o público não via a hora de acabar. Olharam a gente torto.
Sounds: É interessante que no Time Will Burn, documentário que fala sobre algumas bandas dos anos 90, como o Mickey Junkies, o Killing Chainsaw e o Pin Ups, rolaram algumas queixas de que eles teriam perdido espaço justamente porque o Raimundos tava deslanchando. Com o Pig Machine foi o contrário porque vocês continuaram conseguindo marcar shows e tal. Não faltou espaço, certo?
Glauco: É, não faltava não. Eram poucos, mas sempre abertos. Mickey Junkies e Killing Chainsaw são bandas que eu admiro até hoje. Foi um passo depois do nosso porque a gente veio desbravando aquela coisa mais direta e aí apareceu essa variação, essa miscelânea de estilos com esses caras aí. E o interior, que foi um lugar que a gente nunca tocou também por vacilo nosso, naquele tempo borbulhava. Muita banda, muito show. Foi um período em que esse pessoal mais de garagem daqui de SP tava efervescendo em criatividade. Era muita coisa honesta, sabe. Não tinha internet, então você fazia uma banda pra tocar e pronto. Não era pra ter view, acessos, não era pra nada disso. Pegamos uma época meio romântica do negócio só que a gente passou por essa época meio que tocando o foda-se [risos].
Z: Acho que a única coisa mais profissional que passamos foi também quando tomamos um tombo, o que deu uma desiludida.
Sounds: O que aconteceu?
Z: Foi o lance do Aeroanta, com o cara da ABGESP (Associação das Bandas de Garagem do Estado de São Paulo).
Sounds: Nossa, tinha isso? Tinha que pagar boleto? [risos]
Glauco: Tinha que vender cota de ingresso.
Z: Cara, e o Aeroanta era um puta pico.
Sounds: Mas o que esse cara da ABGESP aprontou?
Glauco: A gente chegou lá bem alterado por causa de toda a situação. Se não vendêssemos os ingressos, teríamos que pagar do bolso e a gente não vendeu. Na hora de tocar eu falei uma pá de merda no microfone, quebrei o microfone…
Z: Vendemos pouquíssimos ingressos e quando chegamos lá soubemos que teríamos que pagar os que não haviam sido vendidos. Só ficamos sabendo disso lá na hora do show. Aí a gente ficou puto.
Glauco: E o cara fazia isso com outras bandas e elas pagavam.
Sounds: Ninguém tá livre de roubadas mesmo. Tiveram outras histórias curiosas ou passagens engraçadas mesmo?
Z: Marcaram pra gente tocar numa festa para o Exploited, no Der Temple. Era a gente e o I.M.L. O Der Temple fazia essas coisas, essas festas. Teve também aquela do Nirvana, na época do Hollywood Rock.
Glauco: Que a gente também foi convidado.
Sounds: PERA AÍ, PERA AÍ!!! Vocês foram convidados para aquela festa?
Glauco: Nesse dia todo mundo foi pro Hollywood Rock. Aí o Boba ligou pra gente e falou “meu, toca aqui”. E a gente “ah meu, hoje nem vai rolar, tem Nirvana”.
Z: Ele falou “os caras vão vir pra cá depois do show”.
Glauco: Só que como a gente conhecia o Boba, a gente já falou “nem, hoje não rola”. E fomos ver os caras no Hollywood Rock.
Jo: E não fomos tocar na festa do Nirvana [risos]
Sounds: Nossa! [risos]
Glauco: Os caras saíram do Hollywood Rock, foram pro Der Temple e nós não fomos [risos].
Z: E a gente saiu do Hollywood Rock e falamos sobre passar no Der Temple. Aí os três tudo cansadão “ah, vamo pra casa mesmo” [risos]. Aí depois a gente ficou sabendo que foi o Flea (Red Hot Chilli Peppers), o Kurt Cobain, a Courtney Love e umas mina do L7.
Glauco: A gente ia tocar “só pra essa galera”. E falamos “não” (risos).
Z: Os caras fecharam a porta do Der Temple. Ninguém entrava, ninguém saía. E a gente perdeu essa.
Sounds: Pô, melhor história. Como dormir depois disso?
Z: Teve também o Exploited. Chamaram a gente pra tocar na festa fechada pra eles. Mais cedo já tinha uns cartazes com o logo da banda e aquele corte de “proibido”, e comentavam lá “tá descendo punk num sei de onde, tá subindo careca”.
Glauco: Tinha um movimento que chamava Juventude Libertária. Esses caras curtiam ir aos nossos shows. Eram uns caras que o pessoal do No Violence levava. Uma molecada SxE já nessa época. Na porta do pico, quando os caras souberam que a gente ia tocar, disseram “se vocês tocarem aí, a gente vai começar a boicotar show de vocês. Porque o Exploited é uma banda de racista.”. Pô, um olhou pro outro e decidiu, “não vamos tocar”. Nessas a gente já tinha descarregado o equipamento, mas aí colaram os punks da Reinação, que eram uns punks tradicionais. Eles perguntaram “onde vocês estão indo?”. E nós: “a gente vai sair fora”. E os caras: “Como assim? Por que vocês vão sair fora?”. E a gente: “Porque fulano vai boicotar e tudo mais…”. Aí os punks: “não! Vocês vão tocar! E se fulano vir aqui que vai fechar o tempo mesmo”. Aí nós três de novo olhamos um pro outro e “tá bom, então vamos tocar” [risos]. E tocamos. Lá fora, uns SxE gritando pra gente [risos].
Sounds: No livro Meninos em Fúria, escrito pelo Clemente e o Marcelo Rubens Paiva, eles contam como o punk se sobressaiu mais na periferia. Vocês tinham contato com isso?
Glauco: Não. Ainda tinha o espaço do punk que era muito voltado para a ideologia. O hardcore que era mais relacionado com a música. Então a gente, como uma banda hardcore, foi tocar em festival punk, por exemplo, no Persona, que ficava no Bexiga (SP). Uma mina ficou xingando a gente do começo ao fim do show porque não éramos punks.
Sounds: Porque eles acreditavam que, por ser hardcore, não tinha engajamento suficiente?
Glauco: De birra, a gente abriu esse show tocando a música “Black Sabbath”, do Black Sabbath.
Z: Teve uma entrevista que o cara perguntou sobre ideologia e eu “ideologia? Tem ideologia não, cara”. Depois vieram até falar umas merdas pra mim.
Sounds: Já na época tinha textão de Facebook, sem ter Fecebook.
Glauco: Era mais perigoso se abster do que tomar uma posição. Não tínhamos posição. A gente queria tocar. Montamos uma banda porque eu tinha uma energia acumulada por um motivo, o Z por outro e nós três tocando era legal pra cacete!
Sounds: Por exemplo, hoje todo mundo tem opinião, tem ideologia, ou faz questão de mostrar algo (ou postar) primeiro pra se sentir formador de opinião e por aí vai. Isso sem falar nos chamados influenciadores… enfim. Outra época, outros dias, outra postura em relação a movimentos e música. Como vocês acham que seria o Pig Machine hoje?
Glauco: Por conta das ideologias, hoje ia ser mais chato ainda.
Sounds: Iam cobrar mais ainda de vocês?
Glauco: Iam. E cobrar desnecessariamente.
Z: Eu acho que ia continuar a mesma coisa.
Sounds: Interessante que, pelas referências de vocês, como Ramones e Misfits, também não eram banda com ideologia explícita.
Z: Exatamente.
Glauco: Era só a música. Não pregam por aí um mundo sem preconceito? Então, a gente não relacionava nossa ideia a nada. Foda-se! A gente vai falar do verde, do redondo, do alfabeto grego. E hoje é muito mais chato tudo isso. Por isso que, no nosso tempo, a gente sofreu com isso e hoje deve ser mais chato ainda.
Z: Eu acho que aquela época era mais parecido com o que existe na gringa hoje. Por exemplo, o pessoal ia no Der Temple porque ia curtir o lugar. Aí tinha o Pig Machine tocando e o pessoal “pô, tem uma banda tocando, vamos lá ver”. Viam o show. Gostassem ou não gostassem, eles viam. Hoje em dia, se a molecada vai num lugar que tá tocando banda de som autoral, o cara vai embora. Eles querem ouvir cover. Na gringa o cara vê o show. Hoje eu acho que não existe mais isso aqui.
Sounds: Vocês têm alguma suspeita dos motivos para que isso funcione dessa forma hoje em dia? Tem a ver com internet, as facilidades…
Fábio: Eu acho que é comodismo.
Glauco: E a internet é um advento do comodismo.
Sounds: Voltando a falar sobre os shows. Havia grandes festivais underground que revelaram muita banda boa. Vocês chegaram a participar de festivais como o Juntatribo, por exemplo?
Glauco: Não. A gente tinha que mandar uma fita e não mandou [risos].
Sounds: Fita para o Juntatribo, foto pro Miranda, um “não” pra tocar na festa do Kurt Cobain no Der Temple…
Fábio: [risos] Mas a gente tocou pro Exploited. Os caras xingando o Wattie de racista e a gente tocando. Ele foi embora no meio do show da gente.
Sounds: Nesse lance da ideologia, com a galera xingando o Exploited de racista, vocês pensaram em desencanar do show ou não?
Glauco: Não. Tava lá quem queria. Isso que enchia o saco.
Sounds: É interessante que, para uma banda que se coloca sem ideologia, vocês têm ideologia.
Fábio: A gente tinha, só que não era expressada na música. Naquela época era muito segregado. A galera não entendia. Tipo “estou lutando contra o racismo”. A galera ficava “ok, mas como assim?” Ninguém entendia muito o que era uma luta contra o racismo, por exemplo.
Sounds: Se pararmos pra pensar, naquela época, a gente ouvia rock pesado. Dentro disso entrava Venom, WASP, Icon… O punk já era mais determinado. Tinha os guetos, como em Washington, DC, que era um tipo de som, na Califórnia era outro. Mesmo o punk rock tradicional, que era carimbado pelo Ramones, Buzzcocks, Sex Pistols. Em Nova Iorque tinha outro tipo de punk. Era identificável. No metal era tudo rock pesado. Não tinha black metal, death metal, sludge, post sei lá o que…
Fábio: Issooo.
Glauco: Total. O Circle Jerks, por exemplo. É uma banda bandeirante pra mim. Eles trouxeram o punk/hardcore pra dentro do metal.
Sounds: Isso. Como vocês enxergavam essas divisões dentro do punk/hardcore, por exemplo? Como entendiam que o Black Flag era um rolê distante do Extreme Noise Terror, mas que tudo ali era punk, mesmo com suas divisões?
Glauco: Olha, começou com o Walcir lançando o Circle Jerks.
Fábio:Acho que não foi a Woodstock, foi a Eldorado.
Sounds: Isso, era o IV, foi lançado pela Eldorado aqui.
Glauco: Pra mim foram os primeiros a trazer os elementos de punk/hardcore pro metal. Foi aí que a gente começou a misturar nossas influências. E não era metal. A partir daí, o crossover meio que transportou todo mundo para um mesmo universo. Quem fazia metal começou a fazer um metal diferente e quem fazia punk começou a fazer um som mais pegado, com umas palhetadas.
Sounds: English Dogs e o próprio Ratos de Porão, né?
Glauco: O Vivendo Cada Dia Mais Sujo e Agressivo e o Brasil são exemplos disso.
Fábio: Nós três fomos em todos os shows da turnê do Brasil. Todo show a gente ia. E do Anarkophobia também. A gente acabou o Apoleon e formou o Pig Machine com aquela mentalidade do Brasil.
Glauco: Eu já tinha aquilo represado. Eu tava numa banda de metal e queria tocar aquele som hardcore.
Sounds: Dá pra dizer que foi uma sorte para o Pig Machine não ter começado em 85, por exemplo? Vocês começaram numa época onde tava todo mundo querendo misturar influências e referências tanto nas músicas, por parte das bandas, como no que ouvir, por parte do público.
Z: Sim, sim. A gente era porrada pra época. Por isso que a gente se dava bem com as bandas do metal.
Glauco: Em 85 a gente tava começando a ouvir som. Era mais difícil. A gente já pegou o lance mais aberto. Não era mais marginal. Essa marginalidade acabou lá nos anos 80. Nos anos 90, quem ia nos shows eram filhos de boas famílias.
Sounds: Nos anos 90 o rock era legal. Era cool se falar em rock.
Glauco: Isso. Como hoje em dia.
Z: Vou te falar uma coisa, acho que o Pig Machine não teria espaço hoje em dia aqui no Brasil. Na gringa, como tem uns festivais tipo Obscene Extreme, aí sim, eu acho que era a cara da banda daquela época.
Sounds: Você acham que o Pig Machine era ousado pra época?
Glauco: Eu não acho.
Z: Não acha? A gente gostava de Agnostic Front porque o som era porrada. Era uma das treta que tinha porque diziam “ah, mas os caras são fascistas e tal”.
Glauco: Em show straight edge a gente tocava “Last Warning” não pra provocar, mas a gente gostava de tocar, cara!
Z: Eu acho que era ousado porque nessa época todo mundo queria fazer thrash metal. As bandas de hardcore tinham uma linha de guitarra mais abafadinha, limpinha. A gente com distorção pesada.
Glauco: A gente ouvia Misfits e fazia música.
Z: É, por isso que eu acho que a gente se dava bem, porque não tinha muita (banda) igual a gente.
Sounds: Vocês sentiam alguma resistência pelo fato de a banda ser da Zona Leste?
Glauco: Porra, pra caralho!
Sounds: Naquela fase do início dos anos 90, você ir pra Vila Madalena ver um show no Alternative, era quase uma viagem pra Santos. Saía de casa 20h e voltava 7h da manhã.
Glauco: É, exato. E tinha também aquele miolinho com as bandas da Praça da Árvore e Aclimação e a gente não era daquele espaço. Nossa, quanto show a gente não foi chamado porque não estávamos naquela panelinha. A nossa panelinha tinha a ver com o rolê que a gente fazia até o centro pra se integrar. Aqui, o que ajudou é que o I.M.L também era da Zona Leste. Eles tiveram uma atenção legal. Quando o Alternative mudou da Vila Madalena lá pra Penha, caiu 70% do público.
Sounds: Tanto que, depois disso, a casa voltou pra Vila Madalena, né?
Glauco: Então, existia sim esse preconceito.
Sounds: Em que ano que o Pig Machine começa a entrar na fase final?
Fábio: A gente lançou a demo de 96 e aí eu saí.
Z: O Glauco voltou com o Pig Machine, mas com outros caras. Eu e o Jo pensamos em começar uma nova banda e o Glauco continuou. Na verdade, o mais cabeçudo, porque esse aqui [aponta para o Glauco] era o mais louco e a gente que segurava as pontas. Marcava ensaio e ele não aparecia [risos].
Glauco: O tempo bom do Pig Machine foram os dois primeiros anos. Que foi onde a gente tocou sem compromisso com naaada. Esse momento de lazer absoluto que a gente viveu durante um período que é a nata do Pig Machine. Porque o resto sempre teve um “senão”. E foi o que desencadeou desentendimentos pessoais, afastamento, bloqueio de amizade. Ou seja, você coloca a música e aquela coisa de estar com os seus amigos, mas quando isso saiu de cena como atração principal, o negócio começou a desviar. Diga-se de passagem, começou a desviar para a cena inteira. O Pig Machine, depois 94/95, que foi até onde essa formação durou, tentou persistir, mas meio sem vontade. Eu mesmo, que foi o único que ficou, não via metade do tesão que eu via quando eu comecei a banda. Quando éramos nós três.
Sounds: Onde vocês acham que estaria o Pig Machine hoje em dia?
Glauco: Ensaiando uma vez por semana em um estúdio, por terapia.
Z: Eu acho que o Pig Machine deveria ter entrado na gringa. Eu já pensava nisso, mas a gente era tão moleque que era uma coisa bem distante. Imagina, se hoje com internet, com todos os contatos, já é foda, imagina na carta. Era outro mundo.
Glauco: Pô, eu lembro, pra devolver uma carta era como se hoje fosse R$ 1,30. Pra devolver uma carta. Então, era a preguiça de escrever e o dinheiro.
Z: Uma vez pintou um gringo num show nosso, um inglês. Ele era tipo o Supla. E ele pirou na gente e não saiu da nossa cola. Ia em todos os shows. E ele falava pra mim “vocês têm que vir, têm que meter as caras”.
Glauco: Acredito que a gente estaria autossustentável até hoje.
Sounds: Vocês acham que esse tesão pelo som, pela banda, por estarem juntos, vinha da amizade de vocês três?
Glauco: Sim! Totalmente. Eu senti isso na pele. Porque eu toquei sem eles dois e sei o quanto foi diferente. Teve um tempo que eu “puta que pariu, porque que acabou? Por que aquela brincadeira que tava tão legal acabou?”
Z: A gente sempre foi além da banda. As famílias eram amigas.
Glauco: É. Coisa de pai e mãe saber pelo nome, perguntarem até hoje, depois de 25 anos “como é que eles estão?” Sabe, é uma coisa que transcende. Aí você junta com o fator motriz que é a música. Amizade e música. O Pig Machine só foi isso. Só foi isso, cara!