Foo Fighters 'The Colour and the Shape' é um disco foda e a gente conta por quê

In Discos
Amanda Mont’Alvão

Todo renascimento presume que algo seja deixado para trás. Mas uma ruptura passa a ser também uma chance de construção, com novas bases e outras identificações. Em 1994, Dave Grohl precisou lidar com a trágica morte do amigo e companheiro de banda Kurt Cobain. Não haveria mais Nirvana sem a trinca Cobain-Grohl-Novoselic. Um luto começava.

Parte desse luto é vivido com a criação do Foo Fighters no mesmo ano, com um Dave Grohl compositor cheio de coisas engasgadas para expressar, represadas durante o tempo em que era conhecido apenas como “o baterista do Nirvana”. Um lado melódico e fortemente cancioneiro de que muitos não tinham ideia, inclusive a gente. A fama tem dessas coisas, de aprisionar em um certo papel e obscurecer outros talentos do mesmo artista.

O fato é que Foo Fighters, o disco homônimo de 1995, apresentou um outro Dave. Por aqui, nosso contato foi com a MTV e o programa Alto-Falante, da Rede Minas, que exibiam os clipes de “I’ll Stick Around” e “Big Me”. Eram músicas vigorosas, recém-saídas do grunge, mas com um apelo ainda mais pop. Porém, é em 1997 que estamos interessados, quando o Foo Fighters passou por rupturas que vieram a redefinir os alicerces da banda, hoje um sinônimo de sucesso.

Foto: Dustin Rabin
Foto: Dustin Rabin

Lá se vão 20 anos desde o primeiro disco do Foo Fighters como grupo. Desta vez, Dave estava na companhia de Pat Smear (Germs) na guitarra, Nate Mendel (Sunny Day Real Estate) no baixo e William Goldsmith (também do Sunny Day Real Estate) na bateria. Repare que esta formação inicial do Foo Fighters vinha do punk (além do Germs, o DNA tem também o Scream e o Mission Impossible, onde Dave tocava bateria) e do peso sem firulas trazido pela dupla Mendel/Goldsmith. Essas origens dão credibilidade à trajetória de ascensão da banda, que hoje segura shows em estádios para mais de 80 mil pessoas com a mesma garra com que tocaria em uma garagem sem ventilação.

Mas se o nascimento de The Colour and the Shape foi grandioso e cativou tanto público quanto (parte da) crítica, foi doloroso na mesma medida. Tudo mudaria a partir deste disco, que foi o embrião da imagem que hoje temos da banda – gigante, performática, suntuosa. Mas foi também o disco que escancarou os problemas pessoais que os integrantes estavam vivendo e deixou clara a maneira como a música pode ser a porta-voz de sentimentos tão difíceis quanto universais.

As composições são coletivas e nasceram nos porões da casa de Goldsmith, em Seattle, onde o Foo Fighters ensaiava. Dave chegava com alguns riffs-base e a banda desenvolvia as canções entre uma passagem de som e outra da extensa turnê do primeiro disco. Eles estavam entrosados e decididos a fazer um disco elaborado e ambicioso, ao contrário do álbum anterior, concebido na simplicidade do punk. Isso era 1996.

the colour and the shape

Para tanto, chamaram o produtor inglês Gil Norton, que simplesmente tinha no currículo o Doolittle (1989), o Bossanova (1990) e o Trompe Le Monde (1991), do Pixies, e mais tarde deixou sua marca em discos do Jimmy Eat World, Dashboard Confessional, Feeder e Gomez, só pra citar alguns. Com ele, o loud-quiet-loud que conhecemos com o Pixies e popularizado com o Nirvana também dá identidade ao The Colour and the Shape. Não é à toa que o segundo álbum do Foo Fighters esteja tão conectado à tal sonoridade dos anos 90 e fosse companhia harmoniosa para o Spanaway, do Seaweed; o Manic Compression, do Quicksand, e o disco homônimo do Handsome.

Mas o entusiasmo da banda começava a ser atravessado pelas rachaduras que começavam a aparecer. No estúdio, Dave recebeu os papéis do divórcio da fotógrafa Jennifer Youngblood. Aos olhos dos companheiros, ele permanecia brincalhão e não demonstrava a tristeza. Foram as letras que comunicaram a montanha-russa de intimidades musicadas: You know in all of the time that we’ve shared / I’ve never been so scared / Doll me up in my bad luck / I’ll meet you there, anuncia a sofrida “Doll”, que abre o disco.

Antes mesmo de Colour… vir à tona, rolou uma ruptura significativa na forma. Ao ouvir as sessões da pré-gravação, Norton não gostou do resultado. O processo de gravação já tinha tinha sido muito árduo, pois o produtor exigia da banda técnica e tempo criteriosos, o que era uma total novidade para todos, que vinham do punk. Parecia que nada que o quarteto tocava satisfazia suas pretensões perfeccionistas. Goldsmith, em especial, sentia a sombra de Dave, tido como um baterista fenomenal, como uma pressão. Ele chegou a repetir uma música 96 vezes em uma sessão, e precisou fazer 13 horas de ensaio em outra, de acordo com uma entrevista ao Miami New Times. O clima em estúdio não ia nada bem, e eles decidiram fazer uma pausa.

foo fighters
Nate Mendel, Pat Smear, Dave Grohl e William Goldsmith. Foto: Divulgação

Dave voltou para a casa da mãe, em Arlington (VA). Desse período de reclusão nasceram duas canções de amor: a sensacional “Everlong”, que muita gente daria um braço para ter composto esses fraseados tão marcantes e um dos bridges mais icônicos dos anos 90; e a delicada e tristonha “Walking After You”.

Depois da pausa, produtor e banda decidiram mudar a gravação para Los Angeles. Mas antes disso, Norton convenceu Dave a regravar algumas faixas, em caráter de teste. Ele regravou a bateria de “Monkey Wrench”, para total satisfação de Norton. “Ficou dez vezes melhor”, diz o inglês no livro This is a Call: A Vida e a Música de Dave Grohl, de Paul Brannigan (Leya). Outras faixas foram regravadas, e Pat e Nate foram chamados para refazer suas partes. Goldsmith, no entanto, não foi chamado para este retorno. Ninguém lhe falou o que estava acontecendo. Quando descobriu que seu trabalho havia sido regravado, ficou bastante chateado e saiu do Foo Fighters, apesar de Dave tentar convencê-lo a ficar. A saída não foi digerida por nenhum dos integrantes da banda, que só foram falar sobre isso em 2011, por ocasião do documentário Back and Forth. No filme, Dave admite, entristecido, que gostaria de ter lidado com a situação de outra maneira. “Sei que William nunca vai me perdoar por ter tocado a bateria neste disco… foi uma época muito estranha e eu era jovem… que merda…”.

À biografia, Goldsmith disse que Dave pediu que ele continuasse e fizesse o disco. Ele respondeu “cara, do jeito que as coisas estão agora, preciso reconstruir minha alma, reencontrá-la… obrigado, mas não quero”. Em The Colour and the Shape, o baterista só está presente nas faixas “Doll” e “Up in Arms” (na seção lenta). Uma pena. Aqui no Sounds, temos certeza do grande talento dele por conta do Sunny Day Real Estate – ouça “Red Elephant” para ter uma ideia da dimensão criativa dos preenchimentos do cara.

Para substituir Goldsmith, Dave chamou Taylor Hawkins, que vinha da banda de Alanis Morissette e permanece até hoje como baterista do Foo Fighters.

Estes rompimentos dolorosos eram simultâneos a uma nova gramática que surgia na banda. The Colour and the Shape tinha jeitão de sobrevivente do grunge, um domínio do rock melódico tal qual R.E.M. ou Replacements, e o espírito da música alternativa dos anos 90, com versos tocados na maciota atravessados por refrãos pesados e geralmente catárticos. Era um disco para se pensar nas letras, mas também para se deixar atropelar pelas sensações do que não era dito. As dinâmicas aqui dão uma cara única a cada música, fazendo com que toda a experiência traga emoções distintas.

Parece uma coletânea: no álbum você encontra a esporrenta e eufórica “Monkey Wrench” e seu refrão pegajoso com o marcante vocal gritado de Dave Grohl; as maravilhosas “Everlong” e “Walking After You”, e a antêmica “My Hero” com seus poderosos riffs guiados pelo bumbo. É um dos pontos mais emblemáticos do cancioneiro dos anos 90. Tem uma lenda de que ela seria uma homenagem ao Kurt, mas Dave diz que ela fala de heróis comuns do dia a dia.

foo fighters 11

É interessante pensar também que em 1997 as turbinas para o estouro do nü metal já estavam bem aquecidas: já existiam o Adrenaline (1995) e o Around the Fur (1997), do Deftones, e o Korn já tinha o disco homônimo (1994) e o Life is Peachy (1996). Existia na música daquela época um espírito de angústia acumulada, geralmente despejada em arranjos pesados, porém bastante acessíveis, e em refrãos bastante inflamados.

A inflamação de The Colour and the Shape é espontânea e frequentemente reprimida, o que lhe dá uma dimensão bastante realista. “Doll”, praticamente uma cantiga, tem levada acústica bastante calma e anuncia queixas de amor. “Hey, Johnny Park!”, uma das nossas favoritas, traz um certo cruzamento de Screaming Trees com Beatles inseridos em uma dinâmica de peso, especialmente na distorção da guitarra apoiada na percussão.

Na sequência, “My Poor Brain” aparece bem lúdica, com vocal dócil intercalado por refrãos vigorosos. Tem também fraseados marcantes que mais tarde darão espaço para uma ênfase nas batidas repetitivas. “Wind Up” com sua guitarra fartamente distorcida traz reminiscências do Nirvana, mas se descola com uma extensão das melodias. “Up in Arms” é puro contraste em seus versos preguiçosos de uma balada surpreendida com viradas fantásticas, com solinho que praticamente canta. É curta e voraz.

Foto: Tim Mosenfelder
Foto: Tim Mosenfelder

“See You” faz espanar a melancolia com um foxtrote manso e forte acento no baixo. Quem vem depois é a também nirvanesca e pouco polida “Enough Space”, que parece fornecer as primeiras linhas para o sucesso comercial “Breakout”, do disco seguinte. A belíssima “February Stars” castra a agressividade com notas sublimes que se avolumam até estourar em um chamado aparentemente urgente. Pra nossa alegria, é bem emo. Um fato curioso é que ela é da época do Nirvana e chegou a ser gravada junto com Krist Novoselic. Fechando o disco tem a deliciosa “New Way Home”, que embaça as definições entre rock e pop e mais uma vez prova que o Foo Fighters faz bridges inesquecíveis.

Em seu aniversário de 10 anos, o disco ganhou seis faixas, sendo uma delas a fantástica “The Colour and the Shape”, um flerte descarado com o noise e um abraço honesto nas distorções que claramente remetem às origens. Se There is Nothing Left to Lose, o álbum seguinte, trazia um Foo Fighters brincalhão nos clipes e apresentável para casamentos, batizados e coquetéis de firmas, The Colour and the Shape inscrevia o potencial criativo e mais pretensioso da banda, com peso, dor e calmaria imprevisivelmente entrelaçados. É um album de luto e de recomeço, pronto para suportar as surpresas da vida.

Foo Fighters com Taylor Hawkins (deitado à esquerda) na formação
Foo Fighters com Taylor Hawkins (deitado à esquerda) na formação. Foto: Divulgação