Nirvana Os discos e o impacto que a banda teve na nossa e na sua vida

In Bandas, Discos
Vinicius Castro

Certas presenças são sensíveis, mesmo quando não estão. Uma falta que cala por poucos segundos até que a vida grite em refrãos roucos e esteticamente desafinados. Mas, pensando bem, o que é a vida senão uma eterna procura por afinações? E nessa procura o Nirvana sempre trilhou uma estrada delimitada por uma paisagem de beleza explosiva. Poucos discos e muito, mas muito estrago – no bom sentido.

Há pouco mais de 30 anos, Kurt Cobain se juntou ao amigo Krist Novoselic, tomaram emprestado um PA da tia de Cobain e um gravador de quatro canais. Era o início de um enraizamento com ética derivada do punk e da urgência adolescente. Novoselic certa vez disse que o cara mais punk e antiautoridade que ele já havia conhecido era Cobain. Uma pessoa aparentemente cheia de inquietos porquês, pronto para contaminar o mundo e se fazer ouvir aos gritos.

Chad Channing, Krist Novoselic e Kurt Cobain na época de Belach
Chad Channing, Krist Novoselic e Kurt Cobain na época de Bleach. Foto: Acervo Sounds Like Us/ Cobain Unseen.

Dezenas de músicas do Nirvana ainda hoje funcionam como contorno a lembranças envernizadas por um sentimento particular a cada um de nós. É comum que 10 entre 11 pessoas desse planeta, e que viveram os anos 90, contem com certeza aritmética onde, quando, a que horas, minutos e segundos, e onde estavam quando ouviram “Come As You Are”, a primeira vez que viram o clipe de “Smells Like Teen Spirit” na TV, ou quando escutaram outras faixas não tão conhecidas, mas igualmente impactantes como “Sliver”, “School” e “Territorial Pissings”. Uma combustão de pop clássico amplificado pela distorção violenta da guitarra de Cobain, o baixo delineador de Novoselic e o peso preciso da bateria de Dave Grohl, o quinto baterista da banda. Isso mesmo, o quinto. A gente até poderia dizer que Grohl estava no lugar certo, na hora certa, mas ele já vinha da cena punk/hardcore de Washington DC. Tocou no Scream e passou pelo Mission Impossible, duas bandas que já eram bem conhecidas por lá.

Na arte, independente de por onde se manifesta, talvez nada seja mais valioso do que quando ela se torna o seu despertar, evoluir ou respirar, e o Nirvana conseguiu isso. Eles sacudiram a órbita de um sistema que vinha morno e precisando de algo novo, mesmo que isso já viesse ocorrendo na cultura underground aqui e lá nos EUA. Na superfície isso não era muito claro, então era preciso mais distorções e alguns gritos. Foi o que aconteceu.

Um dos ensaios da banda (foto: acervo Sounds Like Us)
Um dos ensaios da banda (foto retirada do encarte de Bleach). Foto: Acervo Sounds Like Us

No meio de todo o sucesso, Kurt Cobain nunca se mostrou à vontade em ser porta voz de toda uma geração, mas isso acabou acontecendo. Mesmo porque este é um estágio que não basta perseguir e muito menos calcular; simplesmente acontece. A geração elege quem vai portar ou não tal voz.

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Bleach (1989). Foto: Sounds Like Us

Danny Goldberg, da gravadora Gold Mountain, conta em sua biografia que Kurt Cobain tinha uma mística poderosa que o deixava sem fôlego.

Cobain transparecia ser do tipo que poderia estar no palco e na plateia e se mostrar pertencente a ambos. Fez bom uso desse dom, somando uma raiva contida à sua eloquência criativa para dar vida a Bleach, o primeiro registro da banda, lançado em 1989.

Bleach foi gravado em apenas três dias, pela quantia de aproximadamente U$ 600. Em poucas palavras, diria que é um disco destemidamente cheio de vida, como a juventude deve ser. Isso imprime de forma nítida todo o senso de urgência do álbum. Nada ali é pouco. Tudo é intenso, com muita vontade e uma certa desobediência musicada que ia contra o status quo da indústria daquele tempo.

Muitos de nós só ouvimos o disco depois do lançamento do seu sucessor, Nevermind. E, de certa forma, para algumas pessoas, aquilo soou meio “errado”. Não tinha o polimento de Nevermind, mas quem se propôs a exercitar a localização de tempo e espaço, com certeza viu muita beleza nos riffs incômodos de “Blew”. Nas letras, músicas como “School” usam a voz de Cobain como instrumento para exclamar “No recess” e expelem toda e qualquer víscera em “Negative Creep” enquanto ele berra I’m a negative creep and I’m stoned (eu sou um verme negativo e estou chapado).

Livro da edição comemorativa de Bleach (2009)
Livro da edição comemorativa de Bleach (2009). Foto: Sounds Like Us

Bleach ressalta a genialidade de Cobain em criar canções puras, simples e pop. “About a Girl” é um exemplo claro e em uma de suas explicações, Cobain disse ter escutado Meet the Beatles por horas e horas seguidas antes de escrever essa música dedicada à sua namorada da época. O gosto pelo pop criou entre Cobain e os refrãos uma proximidade fraternal. “Love Buzz”, dos suecos do Shocking Blue, foi o primeiro single. Grande música, daquelas em que o autor original parece desaparecer tamanha propriedade que o Nirvana imprime em sua execução.

Cobain dizia que Bleach era um disco lento e unidimensional de propósito, para se encaixar na estética da Sub Pop. Para nós é uma obra de musicalidade bruta e raiva desassossegada correspondente à época, classe e lugar, que prova que para o Nirvana o meio era a mensagem.

Nevermind (1991)
Nevermind (1991). Foto: Sounds Like Us

Pensando hoje, quem diria que aquela banda estava prestes a carimbar de vez seu nome no mundo da música? Quem diria que um dia você ouviria a mesma banda que compôs Bleach tocando em rádios populares e até como som ambiente em lojas de departamento?

Dentro do espectro que o Nirvana representa, Nevermind é um claro resultado de suas referências. Tem muito de Pixies na estrutura, de Sonic Youth na integridade, do punk e um namoro com o pop de bandas como o Abba, citada por eles algumas vezes. Falando em Sonic Youth, muito se deve a eles o fato do Nirvana ter assinado com a Geffen para o lançamento de Nevermind. Mark Kates, que na época era diretor de promoções na gravadora, conta que quando eles fecharam com o Sonic Youth, Kim Gordon colou nele e disse: “A próxima banda com quem você deveria assinar é o Nirvana”. Com a moral lá em cima, o cara escutou os conselhos de Kim e em abril de 91 eles fecharam o acordo.

Quando entrou em estúdio, Kurt Cobain disse que queria um disco pesado. O peso está lá e as raízes de Nevermind são íntegras, mas o registro estava fadado a ser resumido por alguns que só enxergavam os singles e por uma imprensa urubu que massacrou e usou a imagem da banda até o último instante.

Sessão de fotos Nevermind
Sessão de fotos de Nevermind. Foto: Divulgação

Nevermind atropelou o que viu pela frente e mandou um verdadeiro foda-se na cara do hard rock que dominava o mercado musical com o sucesso do Guns n’ Roses, das paradas pop que entulhavam nossos ouvidos com Michael Bolton, Richard Marx, Mariah Carey, e até do rei do pop Michel Jackson, que perdeu a coroa e entregou o trono para Nevermind quando este apresentou ao mundo uma música que viria a ser o hino de gerações: “Smells Like Teen Spirit”. A música redefinida a partir de então e também o modo de Kurt lidar com toda aquela explosão de sucesso. Talvez esse seja o ponto crucial. A partir dali, e até o fim de seus dias, Cobain brigava com ele mesmo para procurar aquele sentido intenso e genuíno que o fez chegar até aquele ponto.

Cópia de um dos rascunhos da letra de Smells Like Teen Spirit (Cobain Unseen, Charles R. Cross - 2008)
Rascunho da letra de “Smells Like Teen Spirit” (retirado do livro Cobain Unseen, de Charles R. Cross). Foto: Sounds Like Us

A primeira vez que eu, você, nós vimos o clipe de “Smells Like Teen Spirit” na MTV, foi algo aterrorizantemente de tão bom. Com uma letra esquisita, a mensagem era transmitida por vias sensoriais onde palavras seriam de pouca utilidade para traduzir o que foi aquilo.

Curiosidade, a história diz que o riff de “Smells Like Teen Spirit” foi composto em uma das tentativas de Cobain tocar o refrão “More Than a Feeling”, do Boston. Dá uma ouvida aí e tire suas próprias conclusões.


O riff chamando a entrada da bateria e a dinâmica ansiosa que previa uma explosão de energia acumulada eram um convite à liberdade e aos gritos por algo extremamente fresco e honesto.

Mas Nevermind era mais do que isso. Contrário ao seu antecessor, este foi gravado pela bagatela de aproximadamente U$ 135 mil, sob os cuidados de Butch Vig, produtor escolhido pela banda. Antes da decisão, eles também estavam de olho em Scott Litt, produtor do R.E.M, banda de que Cobain gostava muito.

Vig ficou descontrolado, andando de um lado para outro dentro do estúdio no dia em que ouviu os ensaios e os primeiros acordes de “Smells Like Teen Spirit”. E não foi só ele. Ian MacKaye (Dischord / Fugazi / Minor Threat / The Evens) conta que, em uma das visitas à gravadora Dischord, Grohl mostrou para Ian uma fita com as mixagens iniciais de “Smells Like Teen Spirit”, que ouviu e disse: “Cara, que música legal. Vai fazer muito sucesso”. Mais uma vez, Ian tinha razão.

Krist Novoselic, Kurt Cobain e Dave Grohl
Krist Novoselic, Kurt Cobain e Dave Grohl

Engana-se quem reduziu Nevermind apenas ao single de sucesso que abre o disco. “Come As You Are” também era um hit em potencial. Na época, teve muito comentário sobre o riff principal ser “inspirado” em Killing Joke, no clássico “Eighties”, do quinto disco, Night Time, lançado pelos ingleses e um dos queridos por Cobain.

“Breed” vinha forte, com vocais postos sobre riffs dissonantes e aquele cheiro de que ao vivo seria uma arma letal. “Lithium”, que era pra ser o primeiro single do disco, e “Polly” eram outros dois grandes hits, e fecham o Lado A com maestria.

O Lado B é tão incrível quanto. “Territorial Pissings” traz de volta a urgência punk seguida por “Drain You”, que sempre esteve entre as preferidas de Kurt. Ele dizia que era uma música tão boa quanto “Smells Like Teen Spirit” e que não se cansava de tocá-la porque ela não sufocou os ouvidos do público como “… Teen Spirit”. “Longe Act”, “Stay Away”, “On A Plain” é uma trinca de alta qualidade e realmente passa a impressão de uma tríade com começo, meio e fim pra quem ouve. O disco finaliza com a calma, porém tensa e melancólica, “Something in the Way”.

Nevermind mais parece uma coletânea de hits que talvez nem tenham nascido com essa pretensão, mas afinal, é também disso que são feitos os grandes discos.

Outra curiosidade é que, em um dos seus belos artigos, Michael Azerrad reforçou a falta de entendimento de parte do público sobre as mensagens nas letras de Kurt. A gente concorda e vai além: isso fez com que muita gente desse de ombros achando que eram um amontoado de palavras sem sentido. Por exemplo, “Territorial Pissings” é uma música anti-americano-machão e foi usada em um jogo de futebol americano (risos). “Smells Like Teen Spirit” também é cheia de ironias, mas se a gente for mais longe, a letra de “In Bloom” é ainda mais clara, direta e contextualiza um pouco melhor a mensagem:

He’s the one who likes all our pretty songs
And he likes to sing along
And he likes to shoot his gun
But he knows not what it means

Outro fato interessante, é que quando Cobain mostrou o riff de “…Teen Spirit”, Novoselic achou aquilo ridículo. Cobain então fez a banda tocar por várias e várias vezes.

Dave Grohl conta em sua biografia que a princípio não tinha achado “…Teen Spirit” grande coisa e que ela era só mais uma entre tantas jams que eles faziam, gravavam e depois perdiam as fitas. A diferença é que “… Teen Spirit” era uma das músicas em que eles sempre voltavam e lembravam como tocar. Talvez por seu riff e dinâmica marcantes, era uma música que ficava na cabeça deles e, passados mais de 20 anos, ficou na nossa também.

Incesticide (1992)
Incesticide (1992). Foto: Sounds Like Us

Pode parecer um caça-níquel ou um disco tapa-buraco, e quer saber? Na visão da gravadora poderia até ser, mas para nós, foi a abertura de um grande baú de intimidade, e isso faz de Incesticide um disco importante. O que parece um amontoado de músicas de diferentes épocas no fundo é um artista dividindo com a gente aquilo que ele viveu antes do sucesso.

Incesticide resgata o Nirvana desde a gravação de “Mexican Seafood” para a coletânea Teriyaki Asthma até os dias do lançamento de Incesticide. Traçando essa linha do tempo musical, fica claro a sapiência da banda em talhar, martelar e lapidar suas melodias até que elas virem ouro na boca de cada pessoa atingida diretamente no peito pela força de suas canções.

“Hairspray Queen” é parte da primeira demo. “Sliver” e “Dive” fazem parte do último single lançado pela Sub Pop. O disco ainda traz covers do Devo (“Turn Around”), do Vaselines (“Moly’s Lips e “Son Of A Gun”) e a potente – e uma das prediletas da casa – “Aneurysm”.

Incesticide veio pra lembrar que o Nirvana já era uma grande banda mesmo antes de atingir o topo.

Ainda no mesmo ano (1992), o Nirvana já era parte do consciente e inconsciente cultural, e espelho para toda uma geração que fez da banda um modelo de postura. Nas passarelas da moda de todo mundo a camisa de flanela era hype. Nos bares a música do Nirvana era tocada em formato banquinho e violão, e em rádios brasileiras eram parte da programação até mesmo nas mais populares.

Antes de falar sobre In Utero, é impossível não mencionar o tão esperado show da banda no Hollywood Rock, um festival que rolava no Rio de Janeiro e em São Paulo no início dos anos 90.

A a apresentação foi no dia 16 de Janeiro de 1993, no Estádio do Morumbi. Era a maior banda do mundo vindo para o Brasil no seu auge, coisa que naquela época ainda era algo muito raro e distante.

A banda no banheiro do estádio do Morumbi, um pouco antes do show no Hollywood Rock. Foto: Joe Giron

Estádio lotado e, antes do Nirvana, o L7 fez um show maravilhoso. Uma das lendas que sempre envolveram Cobain dizia que ele soube que o festival era patrocinado por uma marca de cigarros e que, por isso, decidiu “boicotar” o show, tocando as músicas bem de qualquer jeito.

Já Grohl conta em sua biografia que Cobain tinha misturado comprimidos com álcool e quase não conseguiu tocar e cantar. Ele balbuciava palavras entre um ranger de dentes e outro. O que os holofotes não mostraram foi que Krist Novoselic saiu do palco por volta de uns 20 ou 30 minutos que, pra quem estava lá, pareceram horas. Depois que ele decidiu voltar, a banda brincou com “Run to the Hills”, do Iron Maiden, “Heartbreaker”, do Led Zeppelin, “We Will Rock You”, do Queen, “Rio” do Duran Duran e algumas outras. Isso sem falar no Flea, do Red Hot Chilli Peppers, que fez o solo de “Smells Like Teen Spirit” tocando trompete.

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A passagem da banda pelo nosso país teve um outro fator ainda mais marcante.

O Nirvana teve uma semana de folga e decidiu usar esse tempo para lapidar algumas músicas novas em que eles vinham trabalhando. Foram até o estúdio da BMG Ariola e entre os dias 19 e 21 de janeiro gravaram sete novas músicas. Entre elas, “Heart-Shaped Box”, “Scentless Apprentice” (que eles incluíram no set do show em SP e foi inspirada no filme Perfume, de 1985), “Milk It”, “Very Ape”, “Moist Vagina”, “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Throhgh the Strip”, e a música que daria o título temporário ao novo disco, “I Hate Myself and I Want to Die”. Mais tarde Cobain chegou a dizer que teria desencanado de dar esse nome ao disco porque as pessoas não entenderiam a ironia. Ainda no mesmo dia, os caras gravaram mais dois covers de “zueira”, uma delas era “Onward Into Countness Battles” (que na biografia de Dave Grohl está escrita da forma errada: “Foward…”) dos suecos Unleashed, banda pioneira do death metal.

In Utero (1993)
In Utero (1993). Foto: Sounds Like Us

No mesmo ano, o lançamento de In Utero foi bem intenso. No meio do rock alternativo o disco era como uma respirada de alívio que expirava um ar tranquilo. No meio dos fãs do refrão radiofônico, foi um álbum de poucas amizades, mas mesmo assim, algumas músicas agradaram quem queria cantar junto. Ou seja, os ingredientes que fizeram do Nirvana a grande banda popular que eles haviam se tornado estavam todos lá com uma diferença apenas: In Utero trazia ainda mais angústias, sujeira e ironias.

É um disco visceral, no literal da palavra. Transpira escárnio, é divertidamente estranho e violentamente direto. Um retrato incômodo do estilo de vida pós “Smells Like Teen Spirit”. É também cheio de dor e atrito. Como se você arranhasse com força uma parede muito áspera e, mesmo sentindo toda dor e aflição, não parasse de arranhar.

É perceptível que Cobain expurgou todo o desprezo pela sua boa sorte (sob algumas vistas) e despejou alguns demônios registrando tudo isso com uma sinceridade enfurecida.

Exemplo desse desprovimento de qualquer forma de casca artística é o início de “Serve the Servents”, que já entrega: Teenage angst has paid off well/ Now I’m bored and old. Ele canta isso de um jeito resmungão que, naquela época, brochou toda e qualquer espera sobre uma nova “Smells Like Teen Spirit”.

Em “Very Ape” ele exclama I’m buried up to my neck in contradictorary lies (Estou enterrado até o pescoço em mentiras contraditórias ou contradicionário, no jogo de palavras que ele criou). Essa viaja de volta para 1989 na pegada do Bleach e o uso do fuzz.

Entre todas, “Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle” é a melhor música do disco e talvez uma das melhores da banda, mas a malícia de In Utero está nos detalhes. À primeira vista, eles parecem usar em larga escala o processo de começar as músicas com sussurros e explodirem no refrão como fizeram em Nevermind. Em In Utero isso começa a incomodar o próprio Cobain, que em algumas entrevistas chegou a contar sobre uma possível vontade de criar músicas mais intimistas para um futuro disco ou algo que ele pudesse explorar mais. Ele dizia admirar o R.E.M também por ser uma banda livre e continuar soando criativamente bem, com a energia da mesma college band que tinham no início. Talvez por isso, em “Pennyroyal Tea” ele chega, intencionalmente ou não, a soar como Michael Stipe entoando a lindíssima “Drive”.

A produção de Steve Albini é preenchida, grave e concentrada em colapsos noise que a banda se especializou em fazer. Mas mesmo sendo lindamente bem feita, a gravadora não gostou e pediu para que Albini refizesse algumas mixes. Em um telefonema, Cobain disse ao produtor que não eram algumas mixes, era praticamente tudo que deveria ser refeito. Isso causou um mal estar entre Albini e a gravadora. O fato é que algumas músicas foram retrabalhadas pelo produtor Scott Litt. Em 2013, uma versão de In Utero foi relançada com as mixagens originais de “All Apologies” e “Heart-Shapped Box”.

Rascunho da letra de Dumb (São Francisco - 2014)
Rascunho da letra de “Dumb” (São Francisco – 2014). Foto: Sounds Like Us

Ainda sobre sinceridade, em “Dumb” Cobain diz: My heart is broke / But I have some glue / Help me inhale / And mend it with you e em um tom que poderia ser narrado por Édipo, em “Heart-Shapped Box” ele escreveu: Throw down your umbilical noose, so I can climb right back. Visceral, né?

Chega então a hora de “All Apologies”, que encerra o disco e traduz um pouco essas coisas inexplicáveis da vida que sobrevivem de forma poética no nosso inconsciente. É uma música atordoante, e a repetição de Cobain entoando no final All in all is all we are tornou-se algo emblemático e soa quase como um pedido de aceitação pelo o que ele parecia ser em sua essência, sem o recorte do sucesso ou na falta de intimidade em se sentir parte daquilo.

MTV Unplugged in New York (1998)
MTV Unplugged in New York (1998). Foto: Sounds Like Us

No mesmo ano do lançamento de In Utero, o Nirvana faz um show acústico para a MTV que acabou virando o disco Unplugged, lançado um ano depois. Honestamente, é bem estranho ouvir Kurt Cobain cantar I swear I don’t have a gun em “Come As You Are” tendo na lembrança a tragédia que viria a acontecer alguns meses depois.

Fora “Come As You Are”, eles ainda tocaram seis covers. Três deles eram do Meat Puppets, inclusive com a presença dos mesmos no palco. Se a franquia de sucesso da MTV no início dos anos 90 servia para que algumas bandas se divertissem dando uma nova roupagem à suas músicas, para o Nirvana aquilo soou como uma diversão sarcástica e, conhecendo o histórico do humor de Cobain, quando o assunto eram as grandes franquias, dava para esperar que esse evento teria uma aura, digamos, diferente.

Dave Grohl, Krist Novoselic, Kurt Cobain e Pat Smear
Dave Grohl, Krist Novoselic, Kurt Cobain e Pat Smear

Em um material bônus, dá pra ouvir Kurt dizer “vocês querem me ver tocar ‘In Bloom’?” O clima é soturno, mas isso tem mais relação com a força dos fatos que vieram a acontecer.

É louco pensar que esse é um álbum tão intenso mesmo sem trazer os ruídos, os gritos e toda aquela energia explosiva que sempre foram a marca da banda.

Unplugged ainda tem “Polly”, “Something in the Way” e um dos momentos mais lindos e dolorosos nas versões de “Jesus Doesn’t Want Me for a Sunbeam”, com Krist no acordeão, e em “Where Did You Sleep Last Night”, do Leadbelly, que como mágica, causa um silêncio fúnebre tamanha entrega na interpretação de Kurt.

A produção do programa pediu para que eles fizessem um bis, mas Kurt se recusou. Talvez ele não tivesse mais nada para dar.

Outros registros também fazem parte da discografia oficial. Entre eles, dois discos gravados ao vivo: From the Muddy Banks of the Wishkah e Live at Reading. O primeiro foi lançado dois anos depois do fim da banda. O disco é uma coletânea com registros ao vivo, gravados entre 1989 e 1994, e talvez por essa irregularidade não entrega muito a força que eles tinham ao vivo. Já Live at Reading, lançado em 2009 junto com um DVD, traz um registro à altura do Nirvana. Na época rolava um boato forte do abuso de drogas por parte de Cobain, que estaria debilitado, e isso levaria a banda a cancelar a apresentação. Para ironizar os tabloides, Cobain entrou no palco de cadeira de rodas, fingindo estar debilitado. Ao tentar se levantar da cadeira, ele cai e rola no chão pra reforçar a atuação e com um set list matador, o Nirvana encerrou as apresentações no palco do Reading Festival com maestria.

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A gente sabe que o Nirvana é cheio de histórias, boatos, causos, contos, encontros e desencontros, mas aqui, vale a música e a importância dessa grande banda e a revitalizada que eles deram no cenário daquele tempo.

Honestamente, nossa única pretensão é prestar uma homenagem sobre as diversas formas que fomos impactados pelas letras, pelo barulho e pela energia que conectava cada nota a nossas vidas.

Em cada garagem ainda há sintomas desse cometa quando o primeiro acorde de “Smells Like Teen Spirit” é conquistado por alguém que sente a emoção de tocar seu próprio instrumento. Entre outras coisas, nisso Cobain deixou sua marca. Ele queria ser considerado o maior compositor do mundo? Sim, segundo Dave Grohl. Mas ele ficava de boa com tudo o que isso envolvia? Não. Essas incertezas sempre permeavam a inquieta personalidade de Cobain que, atingido pela urgência do sucesso e a velocidade dos tempos, foi saqueado pela alta exposição e não teve tempo para si. Era como se ele já se sentisse morto antes de partir e sem tempo para viver o próprio luto.

Certa vez, um motorista que tinha levado Cobain algumas vezes pela chuvosa Seattle comentou: “Era um rapaz legal. Muito quieto. Mas acho que ele sentia muita dor”. De um lado, a sensibilidade de enxergar. De outro a sensibilidade de se deixar ver.

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