Vinicius Castro
O FAR é uma dessas bandas que ocupam um canto bem especial na nossa história. E mesmo a memória sendo uma grande criadora de fatos, é curioso como depois de mais de duas décadas, Water and Solutions (1998), terceiro disco dos californianos, ainda conversa com emoções que circulam saudosas no espaço entre uma audição e outra.
Na época Water and Solutions foi uma descoberta e tanto. Um álbum recheado de propriedades que conversavam com o emo, o rock alternativo e melodias deliciosamente pop que juntavam tudo isso de uma forma nada inovadora, mas com generosa entrega.
O fim da década de 90 foi responsável por confirmar o rock alternativo no mainstream, algo que alguns anos antes seria difícil de prever.
O rock invadiu a grande mídia. Víamos e ouvíamos nas programações de rádio e TV, nomes como Nirvana, L7, Sonic Youth, Ministry, Pearl Jam, Alice In Chains, Soundgarden, Jane’s Addiction, Smashing Pumpkins e tantos outros ali, em horário, digamos, comercial.
Em 1998 também vimos o grande momento vivido pelo new metal, que chegou forte por aqui.
Mas Water and Solution não é só rock alternativo ou emo, muito menos parte do new metal. Em maior ou menor grau, era um pouco de tudo isso. O guitarrista Shaun Lopez, que hoje também toca com Chino Moreno (Deftones) no Crosses, chegou a dizer que sempre se espanta com a grande quantidade de bandas que mencionam o FAR com uma grande influência porque eles sempre foram vistos como uma excluídos do rolê daqueles dias.
Mesmo com uma enxurrada de novidades não só na música, como também na maneira de ouvi-la, aquele era um período que ainda não havia se despedido totalmente de alguns bons costumes, como o de religiosamente todo mês comprarmos as nossas revistas preferidas.
Foi por conta desse bom hábito que, em uma das edições da revista inglesa Kerrang, que costumava trazer destaques em suas resenhas de shows, que dei de cara com um texto sobre uma apresentação do Deftones, à época em turnê divulgando seu recém-lançado Around the Fur. Na ocasião, eram duas as bandas convidadas para abrir a turnê: O FAR e o Will Haven, maravilhas por quem caí de amores logo na primeira ouvida.
O Will Haven, banda da Revelation Records, tradicional selo de hardcore americano de bandas como Youth of Today e Gorilla Biscuits, era arrastado, abrasivo e cheio de melodias dissonantes. Algo que destoava de um selo como a Revelation, é verdade. Mas sobre eles a gente deixa pra falar em uma futura oportunidade. O FAR foi apontado com destaque. Na época eles já vinham incluindo no set list algumas músicas de Water and Solutions, que foi gravado no mesmo ano.
Water and Solutions nasceu na era dos CDs. Nele, Jonah Matranga (vocal), Shaun Lopez (guitarra), John Gutenberger (baixo) e Chris Robyn (bateria) conseguiram acertar em cheio.
O disco soa vivo. Bateria viva, guitarra com mixagem alta, baixo gordo e vocais extremamente viscerais, seja aos berros ou em melodias à flor da pele.
Vale dizer que, antes disso, eles já haviam lançado outros três discos: Listening Game (1992), Quick (1994) e Tin Cans with Strings to You (1996). Todos com alguns bons momentos, mas nenhum deles tão marcante.
O vocal de Jonah é um dos grandes responsáveis pelos sentimentos que o FAR consegue explorar. Ele trafega em letras sobre luz, escuridão, tristeza, raiva, abandono e saudades, mesmo que isso seja uma palavra de tradução insuficiente aos corações americanos.
Há também falam de amor e Jonah parece movido a isso. Em todos os seus estágios, ele está sempre presente, sem correr o risco de cair em armadilhas simplistas ou piegas, mesmo que este seja um sentimento deliciosamente brega.
Shaun Lopez é um cara de muito bom gosto em suas linhas de guitarra. Traz uma forte influência melódica do pop e do emo em acordes abertos, algo que você pode constatar em “Nestle”, uma das minhas prediletas. Sabe aquele trecho da sua música preferida que você fica em silêncio esperando chegar? Então: When I started this / I was thinking of my Father / Now a holy ghost / Now see one become the other / One become me I realize. Nestle, I won’t ever let you gooooo. Ainda arrepia.
“Bury White” é uma a escolha perfeita para abrir o disco. Uma bela amostra do equilíbrio entre melodia e o som grave e orgânico. É quase um Helmet downtempo.
Sobre ela, no encarte de uma edição comemorativa do disco, Jonah diz que depois que o produtor do disco, D. Sardy, tinha acabado de mixar a música, ele saiu da sala não acreditando que tinha feito uma coisa tão bela. Ele disse também não saber quem ia gostar daquilo, mas sabia que eles tinham acabado de fazer algo de que teriam orgulho por muito tempo.
Em momentos mais acelerados, Water and Solutions traz a incrível “The System” e “Mother Mary”. Na última Jonah canta Like Elvis, like everyone / We all die, we all live on in photos and paperbacks / if we’re lucky / we’re coming back. Já “The System” entrega algumas mudanças de andamentos que, no contexto geral, agradam muito.
“Really Here” é uma das mais bonitas e faz ponte com a incrível faixa-título que explode em uma dinâmica próxima, mais uma vez, ao Helmet da fase Aftertaste. Algo que também acontece em “Wear It So Well”, que divide com “Water and Aolutions”, a música, um dos momentos mais pesados.
Chegamos à sensível “Man Overboard” e seu andamento que mais parece uma valsa indie, com direito a bridge em coro e refrão pra cantar junto a plenos pulmões. Aqui, assim como também em “Another Way Out” e “Waiting For Sunday”, a voz de Jonah é acentuada por uma certa crueza. É muito mais garganta, bom gosto e veracidade do que técnica ali. Caso que também que ocorre na frágil e sussurrada “In 2 Again” onde Jonah parece quebrado: And I worry that everyone but me will be laughing at / Something I didn’t see. Ou ainda em Into another, in too deep / Like bees to flowers, sex to steal / And before ever / Will we be in 2 again? É Jonah dando ao amor uma imagem desconfortável e solitária.
Em todo disco, o momento mais, digamos, experimental, na medida de possível, é “Another Way Out”, que junto a “Waiting For Sunday”, são as encarregadas de um encerramento em grande estilo.
O FAR acabou em 99, mas voltou a gravar em 2010, quanto lançou At Night We Live. Um disco muito esperado, mas que não teve um impacto correspondente à sua espera.
Com o fim do FAR em 99, Jonah seguiu gravando sozinho sob o nome de Onelinedrawing. Já em 2000, montou o New End Original ao lado de amigos que tocavam no Texas is the Reason, Chamberlain, e lançou dois discos pela Jade Tree. Depois disso ainda teve o Gratitude, uma banda bem legal que vai por um caminho mais pop punk, meio Jimmy Eat World, e em 2005 lançou um disco e depois EPs. Recentemente ele gravou um disco com o Ian Love, guitarra do Rival Schools, em um projeto chamado I Is Another, além do Moral Mazes (2014) e o Camorra (2017), ambos ao lado de ninguém menos que J. Robbins (Jawbox, Burning Airlines, Government Issue). Atualmente, Jonah segue sozinho em shows mais intimistas acompanhados do seu violão e da necessidade de se manter próximo à música.
Shaun Lopez continua produzindo algumas bandas e tocando guitarra ao lado de Chino Moreno, no Crosses. O baixista Johnny Gutenberger gravou com o Two Sheds e o baterista Chris Robyn segue com o Black Map, banda de post-hardcore que em 2018 lançou um novo EP, Trace The Path.
Passados pouco mais de duas décadas, o FAR ainda é uma banda que aponta o direcionamento musical do seu tempo, mas sem o reconhecimento simultâneo.
Water and Solutions é um acerto e tanto. Um disco influente, porém não muito celebrado. Minha torcida é para que você termine de ler essas linhas e ouça esse grande disco em alto e bom som.