As bandas independentes do Canadá dos anos 2000

In Bandas, Especiais

Foto: House of Strombo

Amanda Mont’Alvão

Uma das emoções mais vibrantes provocadas pela música é a sensação de que algo muito empolgante surge diante dos seus olhos.

Um pouco à margem dos EUA e da Grã-Bretanha, que costumam capturar nossa atenção musical com assiduidade, havia um país despejando criatividade atemporal sem expectativa de que os holofotes trouxessem iluminação. Suas bandas apareciam na surdina, na despretensão, com pouca publicidade. Buscavam mais ouvidos, menos hype. Pelo grande talento e persistência de seus artistas, o Canadá se revelou, na década de 2000, uma verdadeira potência dentro da música alternativa.

Sim, é a terra dos sucessos radiofônicos do Bryan Adams, da Alanis Morissette, da Avril Lavigne e da Shania Twain. São artistas conterrâneos da cantora que fez um navio inteiro afundar em lágrimas com “My Heart Will Go On” – ela mesma, Céline Dion. Mas o Canadá é também o berço de instituições do folk e do rock, como Joni Mitchell, Leonard Cohen, Neil Young e a verdadeira entidade que é o Rush.

Eric’s Trip, de Moncton

Tem alguma coisa de especial naquela água, bebida também por quem estava no chamado underground. Em 1978, o D.O.A. rasgava o senso comum com sua combativa postura política e fazia o hardcore dar o tom da insatisfação dos jovens. Nos anos 80, o SNFU injetava energia descompromissada a letras debochadas no então engajado hardcore. Mais tarde, nos anos 90, quando o alternativo pavimentava o caminho para a tag indie rock, o Sloan fazia sucesso jogando em casa; o Submission Hold já estremecia desigualdades trazendo o feminismo pro centro da música; o Eric’s Trip exportava, com um contrato com a americana Sub Pop, suas mágoas amorosas sonorizadas em um porão; e o Treble Charger se ocupava de músicas boas antes de apadrinhar (socoooorro!) o Sum 41.

Com antecedentes musicais desse porte, é difícil se contentar com o ordinário. De longe, daqui do Brasil, a gente supõe que esse espírito contaminou muita gente. E a partir dele, o Canadá, especialmente nas cidades de Montréal, Toronto e Vancouver, nivelou sua produção musical em um patamar bem alto. Junte a isso os apoios nacionais dados à boa música, por meio das premiações Polaris Music Prize e Juno Awards, e do fundo de incentivo Canada Music Fund.

D.O.A, de Vancouver

Entre os anos 2000 e 2010, a busca pelo extraordinário enquanto ninguém estava prestando atenção acabou sendo o amálgama das bandas independentes do Canadá que reunimos neste especial. Elas chegaram aos nossos ouvidos porque os downloads de mp3 eram uma realidade em muitos lares brasileiros, e sites dedicados a novidades como Pitchfork, Stereogum e Exclaim! faziam coberturas extensas do que andava rolando naqueles trópicos. Ih, fechou o Napster? Sem problemas, tinha Kazaa, SoulSeek, AudioGalaxy, Emule e tantos outros rabos de lagartixa. Era esperar o sábado à tarde para acionar a internet discada e ficar fuçando as pastas digitais disponibilizadas pelos usuários.  Isso se a conexão ajudasse: às vezes demorava semanas, até meses, para um disco ser baixado completamente.

Nesta nossa seleção de bandas – que obviamente deixa várias de fora – tem simplicidade pra quem não gosta de firulas, e tem arranjos elaborados e arduamente ensaiados para quem é chegado(a) numa catarse orquestrada. Se ouvir uma ou duas ou todas elas, não haverá dúvidas de que a pluralidade e a inquietação correm nas veias de todos esses músicos, traduzidas em som barulhento, sublime, contagiante, admirável, comovente, a portas abertas. Para todo mundo.

Wolf Parade

Foto: Shane McCauley

A história do Wolf Parade é bastante entrelaçada com a do Arcade Fire, e não é só porque ambas são de Montréal ou porque o primeiro show do Wolf Parade foi em uma turnê dos conterrâneos. O som retumbante que sai da bateria de “Wake Up”, provavelmente o maior hino do Arcade Fire, é assinado pelo baterista do Wolf Parade, Arlen Thompson.  A boa relação entre as bandas reaparece outras vezes, como quando o Win Butler se refere ao Wolf Parade como o “Nirvana de Montréal” ou quando o Arcade Fire faz um cover belíssimo da melhor música de seus conterrâneos, “I’ll Believe in Anything”, que pertence ao disco de estreia, Apologies to the Queen Mary (2005). Que álbum espetacular! Spencer Krug e Dan Boeckner dividem letras e vocais absolutamente emotivos, e fazem um duelo com os respectivos teclado e guitarra. A marcação assertiva e ritualística da bateria de Arlen Thompson dá ecos de grandiosidade às músicas e os sintetizadores comandados por Hadji Bakara proporcionam uma experiência sonora praticamente alienígena. Tudo alinhavado por refrães altamente cantaroláveis – vide os épicos la la la la las da  fantástica “Dear Sons and Daughters of Hungry Ghosts”.

Se a estreia é marcada por um rock à la Brian Eno encontra David Bowie, com ênfase em riffs, o disco seguinte, At Mount Zoomer (2008), evidencia o polo eletrônico trazido por Dan Boeckner (que mais adiante exploraria ainda mais essa vertente na sua outra banda, o Handsome Furs) e a suntuosidade teatral de Spencer Krug, que parece visitar Elton John, Peeping Tom e Stephen King com a mesma alegria. “Language City” e “Bang Your Drum” podem dar uma amostra.

Expo 86 (2010) retoma as bases roqueiras e já de cara traz uma pegada Bruce Springsteen imprevisivelmente servida de vocais fantasmagóricos na divertidamente esquisita “Cloud Shadow on Mountain”, enquanto “In the Direction of the Moon” respira ares de Led Zeppelin. Em termos de emoções, ao longo da carreira, o Wolf Parade parece ter começado mais melancólico e foi tomando um rumo mais proativo – mas longe de algo ensolarado. O curioso desse disco é que ele não lamenta a ausência de grandes hits, mas enaltece o grande arco criativo em que a banda se encontrava, cruzando referências de uma maneira tão inconsciente que o resultado não só era próprio, como também bastante específico. Você sabe que aquilo ali só pode ser Wolf Parade, mesmo quando te conduz para épocas que você pensa já ter vivido por meio de outros artistas. Em 2016, a banda, que tinha acabado em 2011, soltou o EP 4, mais dançante do que alucinatório. A saudade dos devaneios de Spencer Krug foi compensada pelo disco Cry, Cry, Cry, lançado no fim de 2017, e berço da pérola “King of Piss and Paper”. Que música! Esse retorno reacendeu em nós um pedido entalado na garganta desde 2005: PLIS COME TO BRAZIL!

Sunset Rubdown

Se as incursões mais excêntricas de Spencer Krug no Wolf Parade foram diminuindo com o passar dos anos, no Sunset Rubdown, que começou como projeto solo, elas encontraram moradia definitiva. Exageros, dramas, óperas e cabarés povoam músicas que caberiam tanto em uma taverna quanto em um teatro refinado. A obra de um homem só se tornou uma banda de 4 membros com narrativas surrealistas e arranjos cada vez mais trabalhados. A evolução de Shut Up I Am Dreaming (2006) para Dragonslayer (2009) é notável e também admirável. Este último é um belíssimo e improvável épico de diferentes sensações, passando pela euforia de “Idiot Heart”, pelo baile misterioso de “Apollo and the Buffalo and Anna Anna Anna Oh” e pela carregada e posteriormente redentora “Dragon’s Lair”. O melhor atributo dentre tantos do Sunset Rubdown nos parece ser um talento nato para sons espontaneamente eruditos, mas comunicados com simplicidade.

Frog Eyes

Spencer Krug (Wolf Parade / Sunset Rubdown) não estava sozinho em seus delírios vocais não lineares. Carey Mercer, à frente do Frog Eyes, também era partidário de um canto tão dramático quanto impressionante. Krug, aliás, chegou a fazer parte da banda (é ou não é uma máfia indie canadense?), mas os grandes pilares do Frog Eyes são Carey e a esposa, a baterista Melanie Campbell.

As músicas, que transmitem uma ideia de “música de câmara” com um verniz modernoso, são bastante intensas e por vezes, afetadas de uma maneira um pouco cansativa. Mas os discos Tears of the Valedictorian (2007) e Paul’s Tomb: A Triumph (2010) são ótimos e fazem uma apresentação apropriada do que parecem ser as intenções da banda.

Swan Lake

Assim como o Sunset Rubdown, o Swan Lake propõe belas músicas a partir do esquisito e do imprevisível. Quando você pensa que algo ali está fora de lugar, rapidamente essa “estranheza” sonora encontra um lugar confortável na sua experiência auditiva, e aí tudo fica apaziguado. O resultado entrega uma (con)fusão de mentes criativas – no caso, o já exaustivamente mencionado Spencer Krug (Wolf Parade / Sunset Rubdown) + Carey Mercer (Frog Eyes) e também Dan Bejar, do Destroyer e do New Pornographers. O que poderia ser um confronto egóico se transforma em uma explosão de identidades coexistentes.

Se o ótimo Best Moans (2006) era bastante polifônico e apontava para a existência de tantas diferentes personalidades, o excelente Enemy Mine (2009), com a beleza de “Heartswarm” e de “Spider”, agrupa alguns dos sons em camadas e converte a pluralidade em um registro com a cara de um só – a cara do Swan Lake.

Destroyer

Foto: Fabiola Carranza

Com o Destroyer, Dan Bejar conquistou fama no mundo indie com Kaputt (2011), que trazia o soft rockzzz novamente para o centro das atenções e fazia a galera torcer por uma chuvinha do lado de fora do vidro do carro, como aqueles filmes da Sessão da Tarde em que o mocinho está tentando alcançar a mocinha no aeroporto. Era a típica trilha sonora saudosista com selinho de novidade. Mas esse não é um disco muito querido por aqui, e a gente prefere falar do original e cativante Trouble in Dreams (2008), mais roqueiro, paradoxalmente mais barroco e também mais melódico. “Dark Leaves Form a Thread”, “Foam Hands” e “My Favorite Year” são músicas que atestam o quanto Bejar pode ser grandioso.

Arcade Fire

Sete membros, quatro discos e dois idiomas (inglês e francês) podem resumir o Arcade Fire em uma matemática simples, mas o produto musical dessa equação fundada em Montréal é amplo. Hoje a banda é gigante, mas por muitos anos foi independente, associada à Merge Records, a gravadora de Laura Ballance e Mac McCaughan, do Superchunk. Funeral (2004), o disco de estreia, subvertia a catarse a utilizando como matéria-prima, e não como fim. A morte, tida como um desfecho universal, ali aparece como ponto de partida para as narrativas mágicas criadas pelo casal Régine Chassagne e Win Butler, ambos afetados por experiências de luto simultâneas às gravações. “Une année sans lumière”,  “Rebellion (Lies)”, “Crown of Love” e “Wake Up”, apenas citando algumas, parecem dobraduras musicais, como se cada verso desfiado nos encaminhasse para uma música dentro da música.

Neon Bible (2006), que veio em seguida, expandiu a criação desses vocábulos sonoros, mas sob um contexto obscurecido e lamentoso. Enquanto “Black Mirror”, “The Well and the Lighthouse” and “Keep the Car Running sustentam a dimensão acizentada  que é característica do disco, “No Cars Go” pisa no acelerador e traz uma reconfortante pulsão de vida.

Mas o equilíbrio entre sombra e luz vem é no disco seguinte, o belíssimo The Suburbs (2009). Ele tem grande capacidade de te encantar pouco a pouco, na medida em que o conhecemos (ouvimos), fazendo com que a permanência e a convivência superem qualquer idealização ou dependência da novidade. Tudo isso com uma roupagem aparentemente mais econômica, mais centrada em guitarra/baixo e bateria, alocando sopros e metais em espaços de sutileza. “The Suburbs”, “Ready to Start” e “Sprawl II” dão exemplo do talento cancioneiro destes canadenses. 

Em 2013, o flerte que a banda tinha com o dance bowienesco se transformou em relacionamento fixo, trazido à tona pelo disco Reflektor. É o álbum menos querido aqui em casa, mas é também o lar criativo de “Afterlife”, uma de nossas favoritas.

Japandroids

Formado por Brian King (guitarra e vocal) e David Prowse (bateria e vocal), o Japandroids, de Vancouver, se agarra naquele espírito jovial que o rock convoca em sua concepção. É um duo explosivo, enérgico, com muitos pedais de distorção e afeito ao embaralhamento de voz, acordes e batidas. Ouvi-los pela primeira vez foi como um sopro de vitalidade – um sentimento mais tarde trazido também por bandas como o Cloud Nothings e o Oathbreaker. A formação econômica nos fez lembrar da potência do No Age, que fazia com que dois valessem por quatro, preenchendo os espaços sonoros de toda uma garagem.

Foi em 2009 que os conhecemos, por meio do disco de estreia Post-Nothing. Uma combustão fartamente melódica e com refrãos que engajam a mais contida das plateias, como na infalível “Young Hearts Spark Fire”. Prova disso foram as apresentações em São Paulo em 2012. O show estava marcado para acontecer no finado Beco 203, mas surgiu uma apresentação surpresa na Casa do Mancha e o público pode conferir, praticamente em primeira mão, as sensacionais músicas “Fire’s Highway” e “The House That Heaven Built”, que estariam no futuramente lançado Celebration Rock (2012) – nosso favorito deles. Bastou apenas um refrão, tocado em altíssimo volume, para cada pessoa da espremida plateia arriscar o seu em voz alta. Escutar uma música nova quando se espera ouvir as preferidas é sempre um desafio, e naquela ocasião o Japandroids transformou o desconhecimento em participação imediata.

Retornando à já citada “Young Hearts Spark Fire” com um olhar de 2019, fica um sentimento de que as palavras de King profetizavam o futuro precário da juventude atual, mais afeita a pragmatismos do trabalho e do consumo do que sonhos. “We used to dream / Now we worry about dying” soa ainda mais desalentador.

Broken Social Scene

Foto: Norman Wong

Poucas bandas tornam a congregação algo tão vistoso quanto o Broken Social Scene. A formação é hiperbólica – pense algo em torno de 10 a 20 membros – , os temas melódicos são grandiosos e a diversidade de arranjos não fica para trás. Mesmo tendo Kevin Drew e Brendan Canning como fundadores, é uma banda que sabe conjurar talento sem precisar protagonizar um integrante enquanto se “apaga” os demais. Isso tanto no palco quanto no estúdio. Ao longo dos 20 anos de existência, e é o talento compartilhado dos já mencionados Drew e Canning, mais uma galera da cena local, geralmente agregados em torno da gravadora independente Arts & Crafts, fundada por Drew e Jeffrey Remedios.

A lista é extensa e estrelada: Leslie Feist, Andrew Whiteman (Apostle of Hustle), Charles Spearin (Do Make Say Think), Amy Millan (Stars), Emily Haines (Metric), Ariel Engle (La Force), Justin Peroff, Jimmy Shaw (Metric), Evan Cranley (Stars), David French, Sam Goldberg, Liz Powell (Land of Talk), David Newfeld, Andrew Neville, Jason Collett, Julie Penner (Do Make Say Think), Bill Priddle (Treble Charger),  Jason Tait, Lisa Lobsinger (Reverie Sound Revue), Dave Hodge, John McEntire (Tortoise / Sea and Cake), Jo-ann Goldsmith, Martin Davis Kinack, Adam Marvy, John Crossingham (Raising the Fawn), Ohad Benchetrit (Do Make Say Think) e Torquil Campbell (Stars).

Drew afirma que, na gravação do Hug of Thunder (2017), cada membro chegava com uma ideia e precisava “batalhar” pra que ela entrasse no disco. Imagina conciliar algo com pelo menos 10 pessoas? Pergunte ao síndico do prédio, ele vai garantir que não é nada fácil! A julgar pelos resultados na discografia, taí uma banda que sabe administrar a pluralidade. Se pensarmos na deliciosa dança de “7/4 (Shoreline)”, na angustiante convocação de “Anthems for a Seventeen Year Old Girl” e na hipnose groove de “Stay Happy”, cada detalhe tem uma função, desmentindo o ditado generalista de que menos é mais. Mais é mais aqui. Mais acordes, mais distorção, mais metais, mais dinâmicas, mais músicas favoritas. Curiosamente, é uma dessas bandas encantadoras que figuram como um grande ouro escondido, passível de maior adoração. Não são escalados como headliners de festivais, mas sustentariam o desafio. Ali por 2004/2005, o finado Orkut hospedava várias comunidades sobre a banda, o que alimentava nossa sede por informação sobre os próximos passos.

Ouvir a alucinante e também melancólica “Almost Crimes” pela primeira vez foi como um sopro de vitalidade, especialmente no duelo de vocais entre Feist e Kevin Drew. Era uma baita música, mas nunca houve outra como ela, assim como nunca houve outra “Lover’s Spit” ou outra “Major Label Debut”. Todas únicas e memoráveis. Aliás, isso é uma constante na discografia da banda: não há uma tentativa de reprisar as emoções garantidas nos discos anteriores, mas sim novas saídas criativas, sendo que todas reafirmam o som do BSS como algo inconfundível.

Os temas das músicas são um grande trunfo. As letras mostram introspecção, a busca por laços em um mundo digital mas paradoxalmente desconectado, a universalidade da rejeição amorosa. As seções instrumentais são altamente cantaroláveis – tente ficar imune a “KC Accidental” -, enquanto as partes cantadas por vezes se transformam em hinos, como os versos “Well I got shot. Riding the bird. And you were there. You were theeeere”, de “Ibi Dreams of Pavement”.

Land of Talk

Foto: Stacey Salter Moore

Em 2009 Elizabeth Powell firmou contrato nas apresentações esporádicas que vinha fazendo com o Broken Social Scene e se tornou um membro da banda, para nossa grande alegria. Mas nossa história com ela data de 2006, quando saiu o EP de estreia do Land of Talk, Applause Cheer Boo Hiss. Sete músicas ouvidas à exaustão, com as irresistíveis “Summer Special” e “Magnetic Hill” trilhando passeios no mais alto volume. Daí veio o primeiro disco, Some Are Lakes (2008), confirmando que ali estava uma banda que teria nossa permanente atenção. “Yuppie Flu” e “Troubled” são algumas de nossas favoritas. O mais recente, Life After Youth (2017), chegou depois de muita espera e a expectativa foi parceira da satisfação, tanto que o álbum entrou na nossa lista de melhores do ano.

O Land of Talk é um trio econômico, de guitarra, baixo e bateria, mas incrivelmente potente e expansivo na execução. Tivemos a felicidade de vê-los recentemente, durante show no Breve, e foi impressionante testemunhar o peso das músicas ao vivo. Além de ter uma das mais belas vozes do rock contemporâneo, Liz é uma guitarrista extremamente interessante, dosando visceralidade e delicadeza como quem apenas altera a velocidade de um ventilador. Isso sem contar o carisma de todos da banda, que pareciam não acreditar no quanto os brasileiros estavam felizes de vê-los.  

Feist

Desde que a conhecemos, tanto na carreira solo quanto no Broken Social Scene, o encontro com a música de Leslie Feist tem sido tudo menos uma experiência de indiferença. Uma voz que faz pacto com o respeito pela música, e que fisga já nos primeiros versos. Por aqui apostamos que ela é uma das maiores compositoras e intérpretes da música atual, em confortável trono ao lado de Lauryn Hill, Beth Gibbons, PJ Harvey e Neneh Cherry. Feist circula magistralmente livre entre o folk e o noise, entre a lírica doce e os gritos mais raivosos; pegue para ouvir “Lover’s Spit” e diga se não é tão encantadora quanto os ímpetos de “Almost Crimes”.

Aqui no Brasil ela ficou bastante famosa por conta do adorável clipe de “1,2,3,4”, mas o barato é identificar sua presença em parcerias, como nas composições dela para os noruegueses do Kings of Convenience, ou na companhia do Wilco em “You and I”, ou na dançante releitura de “Closing Time”, de Leonard Cohen, para o belíssimo filme Take This Waltz, ou na improvável colaboração com o Mastodon em 2012. Ainda em processo de lapidação de como seria sua música, Monarch (1999), Let it Die (2004) e The Reminder (2007) não são dos nossos discos favoritos, mas são ilustradores da amplitude de sonoridades praticada por Feist e da potência de sua voz . Além disso, é dos anos 2000 a excelente “Mushaboom”, que chegou a ser usada em um comercial da Apple. Mais tarde, na dobradinha Metals (2011) e Pleasure (2017), pudemos ouvir uma artista em puro derramamento criativo. Os arranjos são grandiosos, mas sem jamais deixar a guitarra ou o violão de soslaio. Alicerce feito, a voz brilha sem qualquer impedimento, como na multifacetada “A Commotion” ou na deslumbrante “Any Party”.

Em 2017 tivemos a incrível notícia de que ela estava de volta ao Broken Social Scene – a saída só ocorreu por conta de conflitos de agenda, já que ela sempre se faz presente na banda. Veio dela a composição que deu nome ao álbum, “Hug of Thunder”, uma delicada calmaria de batidas eletrônicas que sobe lindamente no refrão. O show em São Paulo, no Cine Joia, em 2012, confirmou o quanto estávamos diante de uma artista não só completa, como também muito conectada às suas raízes no independente. Feist faz a música parecer uma festa para o qual somos reiteradamente convidados.

Fucked Up

Foto: Brendan George

Formada em Toronto, em 2001, por seis amigos, o Fucked Up nasceu como uma banda de hardcore, mas jamais em sua sonoridade clássica. Sempre havia uma batida mais improvável, um gancho mais melódico ou uma brincadeira mais sinfônica. Se compararmos os primeiros singles com os últimos registros, como Dose Your Dreams (2018), Glass Boys (2014) e David Comes to Life (2011), fica explícita a ruptura de fronteiras trazida pela melodia, agregando às batidas aceleradas e ao vocal berrado a sutileza de cordas e sintetizadores e até mesmo uma intenção operística. É fato, você nunca sabe o que esperar, ao mesmo tempo em que os reconhece assim que os ouve. O Fucked Up soube incorporar os interesses musicais de seus integrantes, sem sujeitar a criatividade indomável a uma sonoridade hermética e pré-definida. Quem buscava apenas o hardcore raiz deve ter se desapontado, mas caso tenha deixado o preconceito de lado, se beneficiou das surpresas de cadências como na libertadora “The Other Shoe” ou na irresistível “I Hate Summer”.

Dentro do recorte de tempo que escolhemos para este texto, que é de 2000 a 2010, os destaques são o álbum The Chemistry of Common Life (2008) e a coletânea de singles Couple Tracks (2009). Ambos foram nossa porta para a banda. O hardcore já vinha sendo deixado para trás, mas ainda impregnava o espírito das faixas, a exemplo da hipnótica “Black Albino Bones”.

Uma história curiosa e que demonstra o senso de humor da banda é que na música “Magic Kingdom”, presente no single Generation e no Couple Tracks, a intenção era fazer algo que soasse como o Discharge, mas o resultado passou longe. O Fucked Up esqueceu justamente do d-beat, a batida característica da banda britânica. No encarte do Couple Tracks, Mike Haliechuk, que a gente entrevistou aqui, comenta os intentos mal-sucedidos da faixa: “Além disso, a letra [de “Magic Kingdom”] tem o verso ‘you can’t defend against magic’ [você não pode se defender da magia], algo que jamais apareceria em qualquer música do Discharge, ou de qualquer música punk respeitável. Esta faixa é sobre A Caverna do Dragão.”

Ao vivo a banda é ainda mais intensa e inflamável que nos discos, como pudemos testemunhar no show dentro do festival Converse Rubber Tracks Live, em 2014. Como o Dinosaur Jr. tocaria na sequência, deu aquela esperança de que rolaria um encontro ao vivo entre o J. Mascis e o Fucked Up na música “Led By Hand”, na qual J colabora, mas ficamos só na vontade. Ainda assim, o show foi espetacular, tendo como ponto alto a música “A Little Death”, uma de nossas favoritas e que é pouco executada ao vivo. Uma curiosidade é que a banda deu dois prejuízos sequenciais à MTV canadense, em 2007 e 2008, por shows tão destrutivos – via banda e público – que o mosh foi banido das apresentações ao vivo naquele espaço.

Miracle Fortress

Uma banda que assimilou graciosamente as lições harmônicas do Pet Sounds, dos Beach Boys, foi o Miracle Fortress no seu disco de estreia, Five Roses (2007). É dos discos mais belos da década de 2000, ecoando ambiências grandiosas do post rock sobre melodias delicadas e refrãos sublimes – o que dizer do tecladinho “cebola nos olhos” enquanto ele pronuncia “This Thing About You”?.

De Montreal, trata-se de um homem só, Graham Van Pelt, que compôs e tocou tudo no disco, e depois recrutou amigos para a turnê do disco. As faixas são tão doces quanto poéticas, lisérgicas e simultaneamente alertas, convidando o ouvinte a uma viagem inspiradora. O canto suave chega a lembrar o Simon & Garfunkel em determinados momentos. Em 2011 rolou saiu o Was I the Wave, disco que flertou explicitamente com a eletrônica e não nos cativou, mas o Miracle Fortress certamente merece estar nesta lista por seu completo domínio da beleza musical demonstrado em Five Roses.

Do Make Say Think

Foto: Amit Dahan

Fãs de Explosions in the Sky e do This Will Destroy You certamente se encantarão com a beleza do Do Make Say Think. Formada em 1995, em Toronto, para um projeto de arte, a banda dá um acento pop à sua influência jazzística que se reveza entre a melancolia e a combustão – muito por conta das duas baterias. Parte de seus integrantes também toca no Broken Social Scene e ambas compartilham a catarse sonora, mas enquanto o espírito orquestrado parece mais explícito na primeira, no DMST sobressai o sentimento de uma jam criada ao vivo. Nosso primeiro contato foi com o belíssimo álbum Winter Hymn Country Hymn Secret Hymn (2003), que começa com a potência acumulada de “Frederica” e se despede com a emocionante fusão entre o orgânico e o sintético ouvida em “Hooray! Hooray! Hooray!”.

Aqui você encontra as peças-chave do post-rock: as passagens etéreas intercaladas com momentos mais percussivos; as camadas que se avolumam, os ápices melódicos e sinfônicos. Mas há no DMST o trunfo se assenta nos colapsos e nas constantes alterações de dinâmicas, o que os afasta um pouco das bandas mais atmosféricas.

A discografia dos anos 2000 é impecável e revela uma banda em constante busca pelo deslumbramento: desde Goodbye Enemy Airship The Landlord is Dead (2000), passando por & Yet & Yet (2002), You You’re a History in Rust (2007) até Other Truths (2009), o sentimento é de satisfação com a evolução dos álbuns. Em 2017 o DMST retornou mais pesado com o cinemático Stubborn Persistent Illusions, que se tornou um dos nossos preferidos daquele ano.