Entrevista Faixa a Faixa: Jair Naves

In Discos, Entrevistas

Foto: Luciano Viana

Aqui no Sounds a gente frequentemente conversa sobre nossa empolgação em acompanhar discografias. Elas são algo que de certa forma se perde nos formatos atuais de ouvir música, muito centrados nas playlists e em faixas individuais dos artistas, mas que tem plena chance de ser exercido porque a internet facilita a disponibilização dos discos. Para nós, acompanhá-las é um gesto especial porque nos permite estar perto, ainda que imaginariamente, da evolução musical de seus autores, e confirma nosso sentimento de estar diante de uma produção que permanece conosco em diferentes épocas da vida.

Uma das discografias que muito admiramos é a do paulistano Jair Naves, seja na banda Ludovic, no NavesHarris (junto a Britt Harris) ou na carreira solo. Nos nove anos de registro individual, conhecemos as narrativas contundentes e críticas trazidas pela bela melancolia do EP Araguari (2010); nos surpreendemos com as delicadas ironias do single Um Passo por Vez (2011); nos engajamos com a visceral honestidade lírica e musical de E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando a Sua Fuga, Cavando o Chão Com as Próprias Unhas (2012), nos identificamos com os desabafos cheios de nuances de Trovões a Me Atingir (2015) e, agora, nos solidarizamos com Rente e seu olhar consternado de quem sente as dores do país.

Capa do disco, assinada por Renata De Bonis

No acumular de quase uma década, podemos afirmar que Jair concede letra, voz e melodia às angústias de muitos brasileiros, a julgar pelas reações nos shows. As apresentações ao vivo se tornam uma experiência de produção compartilhada entre público e músicos, endossando a intencionalidade das letras de convocar, aproximar e congregar. As palavras de um se tornam o suporte de um outro, em um efeito de enlaçamento pela música. Em uma época de constante campanha pela fragmentação, imaginem o valor político de se deixar enlaçar pela arte.

Neste lançamento tão aguardado de Rente, convidamos Jair para falar de cada uma das faixas. Entre interpretações e subtextos, os desdobramentos de sentido são vários e dão pistas de um artista que não se dissocia das convulsões de nosso tempo. Em um país de milhões de desalentados – tanto no trabalho quanto no alento que falta ao pensar no futuro – é preciso que o desencanto seja pronunciado, gritado e expurgado para que as frestas de esperança se sobressaiam ao caos. Confira nossa entrevista com ele e permita-se construir sua própria apreciação de cada uma destas músicas.

“Veemente”

Sounds Like Us: Você estava a ponto de explodir durante a composição dessas letras?
Jair Naves:
Não sei dizer. Como meu processo de composição é quase sempre muito demorado, às vezes levando meses e inúmeras revisões para concluir uma única letra, seria preciso viver a ponto de explodir, como vocês disseram. E não é um tipo de vida aconselhável para ninguém [risos]. Para tentar diferenciar um pouco esse disco em relação a tudo que eu já fiz até agora, tentei deixar um pouco de lado a aura confessional das músicas e focar no que está ao meu redor – as pessoas, a mentalidade coletiva, as relações humanas, a influência do meio na vida que levamos. Creio que pelo menos dois terços das músicas que formam o Rente vão nessa linha, que é exatamente o oposto do que eu busquei no meu disco anterior, Trovões a Me Atingir, que fala muito mais de batalhas e transformações internas.

Sounds: Qual é esse lugar, aí dentro do Jair Naves, que você localiza como a “ponto de explodir”?
Jair:
Muito do que eu faço musicalmente acaba tendo esse lado catártico, de lidar com sentimentos e aspectos da minha personalidade que eu nem sempre expresso na minha vida cotidiana. Já pude ler muita gente defendendo que arte não devia ser terapia e entendo o que elas querem dizer com isso, mas não tenho dúvidas de que alguns lados meus acabam se manifestando com muito mais naturalidade no que eu componho. Uma das reações que mais se repetiram nesses anos todos de pessoas que me conheceram através da música foi aquela coisa de se surpreender por eu não ser apenas a pessoa que eu apresento nas músicas ou nos shows, como se o que eu escrevo ou canto definisse por completo quem eu sou, sabe como é? Não sei se isso responde à pergunta, mas acho que seria algo por esse caminho.

Tocando com o Ludovic em Ribeirão Preto / Foto: Oswaldo Corneti

“Deus Não Compactua”

Sounds: Essa faixa carinhosamente nos lembrou o Buzzcocks da “Fallen in Love” no riff inicial. Vocês se deram conta disso?
Jair:
Uma das coisas mais curiosas e pouco discutidas sobre música é a capacidade que o ouvinte tem de encontrar essas conexões pouco óbvias, mas ainda assim continuam a existir e precisam ser levadas em consideração. Me lembrou de uma experiência minha recente desse tipo. Um dos discos que mais me impressionaram até agora nesse ano foi o novo do Weyes Blood [Titanic Rising]. Estava ouvindo bem empolgado pela primeira vez, até que apareceu uma linha de voz numa música que me pareceu incomodamente familiar. Deixei passar. Na segunda audição, a mesma sensação, só que ainda mais nítida. Ouvi a faixa novamente e me dei conta que num trechinho bem curto, e somente nele, a melodia vocal me soava exatamente igual à forma com que o John Lennon canta “misunderstanding all you see” em “Strawberry Fields Forever”. Todo o resto é diferente, acho até que o tom da música é outro, mas isso me pareceu idêntico. Pensei a mesma coisa que vocês me perguntaram: “como eles não perceberam isso?”. E, ainda assim, em todas as resenhas que li sobre o disco do Weyes Blood ninguém mencionou esse fato. Então talvez seja coisa minha mesmo e ninguém mais perceba – o que não importa, porque pra mim a similaridade entre as músicas continua lá. A mesma coisa que algumas pessoas dizem existir entre “More Than A Feeling” e “Smells Like Teen Spirit”, para citar um outro exemplo.
Tudo isso para dizer que, embora eu não veja muita semelhança entre “Deus Não Compactua” e “Ever Fallen In Love (With Someone That You Shouldn’t)?”, entendo o que vocês expõem. E pode ser que vocês tenham razão e, ainda assim, por mim tudo bem. Se for para lembrar alguma outra banda, que seja o Buzzcocks, tudo certo. Especialmente depois que o Rob Ashtoffen, nosso novo baixista, disse que a linha de baixo de uma música antiga parecia Kelly Key [risos]. Essa sim foi difícil de ouvir. Daí pra Buzzcocks é um salto, estamos no lucro.

Quando o Pete Shelley faleceu no fim do ano passado, me lembrei vividamente da época em que eu descobri a banda, ainda durante a adolescência, por volta dos 15 ou 16 anos. Gravei o “Love Bites” e o “Another Music In a Different Kitchen” numa fita cassete, um disco em cada lado, e ouvia aquilo sem parar. Numa das minhas primeiras aulas de guitarra, pedi para o professor me ensinar a tocar “Fast Cars”. Era a minha banda punk preferida naquele tempo. Ninguém mais soava como eles, e havia ali uma vulnerabilidade emocional que eu não enxergava em nenhuma outra banda contemporânea deles. Fora o fato de que era um dos poucos expoentes daquela primeira geração do punk, seja ele inglês ou americano, que tratavam de sexualidade e masculinidade em suas letras de uma forma mais realista, senão até mais saudável, menos baseada em clichês, fantasias irreais etc. Nada diretamente relacionado ao que vocês me perguntaram, mas precisava aproveitar o gancho. Acredito que o Pete Shelley é um gênio dos mais subestimados na história da música popular recente. Toda chance de fazer justiça a ele deve ser aproveitada.

Da esquerda para a direita, Renato Ribeiro (guitarra), Jair, Lucas Melo (bateria) e Rob Ashtoffen (baixo e sintetizadores) / Foto: Filipa Aurélio

Sounds: O que vocês estavam ouvindo na época da composição do disco e o que você acha que pode ter entrado como influência?
Jair:
Música é uma das formas de expressão artística em que é mais difícil você alcançar um estado de total autonomia e autossuficiência. Claro que existem pessoas que escrevem, arranjam, gravam e mixam seus próprios discos completamente sozinhos – o que  deve ser ótimo, imagino, mas definitivamente não é como eu trabalho. Eu me alimento muito das influências de quem está comigo nos projetos que eu realizo, especialmente dos músicos e do engenheiro que vier a nos gravar e mixar. Então o núcleo da formação que gravou esse disco comigo – Lucas Melo (bateria), Rob Ashtoffen (baixo e sintetizadores) e Renato Ribeiro (guitarra e vibrafone), além do Zeca Leme, do BTG Studio – foi determinante na sonoridade deste álbum. Os dois primeiros chegaram agora e têm uma química raríssima um com o outro, talvez por ambos terem projetos de todo tipo (o Lucas toca com o Institution e o Labirinto, por exemplo, e o Rob com uma série de grupos dos mais diferentes gêneros), então foi como se tivéssemos muitas possibilidades para arranjos e timbres. E o Renato tá comigo há muito tempo, gravou todos meus álbuns solo até agora, então nosso entendimento acaba sendo bem fácil. 

A influência maior veio deles, sem sombra de dúvida. Além disso, foi uma época em que eu comecei a me interessar por música ambiente, o que chamam de “field recording”, e gravações que fugissem do formato tradicional de canção. Não acho que isso tenha se refletido diretamente nesse disco, talvez em uma faixa ou outra, mas tentei trazer o espírito disso o máximo possível nas letras, que em boa parte eu julgo serem mais reflexivas e menos urgentes, e também na arte, o que a Renata De Bonis conseguiu brilhantemente. No caso desta faixa especificamente, também dá para perceber uma influência da turnê de reunião do Ludovic [em 2017]. Voltar a tocar aquelas músicas, depois de tanto tempo, me fez querer buscar aquele tipo de urgência, me fez querer escrever canções menos longas, mais diretas. Se essa intenção se refletiu em alguma faixa de Rente, creio que tenha sido nessa.

Foto: Filipa Aurélio

Sounds: Esta é uma faixa bem emocional e isso fica explícito na forma com que você grita “não tem fim”. É uma letra sobre o desencanto com o mundo?
Jair:
Putz. Mais uma vez, tendo a discordar de vocês, desculpa [risos]. É bem interessante que vocês vejam uma carga emocional nessa música, porque para mim sempre me pareceu uma letra que apresenta um certo distanciamento emocional do que está sendo dito. Uma análise mais racional do que as que eu costumo fazer nas letras. Pelo jeito, eu estava errado. Acho que tive essa impressão por ser uma rara composição minha sem nenhum verso na primeira pessoa. Mas, ainda assim, sem dúvida há um envolvimento emocional com o que está sendo apresentado, especialmente na interpretação.

Tem muito de desencanto com o mundo, com a natureza humana. Com tudo o que se passou no noticiário político ao redor do mundo nos últimos anos, e quando você volta a coisas que foram escritas há uma eternidade, como, sei lá, “Macbeth”, você vê uma deslealdade e uma sede de poder a qualquer preço que acontece desde sempre. Nunca haverá interação social de qualquer espécie sem uma disputa por poder. A partir daí, julgando o quão baixo as pessoas podem chegar para alcançar seus objetivos, veio toda a coisa da proximidade entre o que é considerado “humano” e o que é considerado “desumano”. Isso para não entrar no ponto do que representa o uso da religião nesse âmbito. Enfim, a discussão em torno dessa vai longe.

“Alivio Cômico / Palanque”

Sounds: Tem uma aura barroca em algumas linhas dessa música. Qual a sua inspiração para a composição desta faixa?
Jair:
A ideia inicial para essa era não usar guitarras ou efeitos de forma alguma. É a primeira faixa que eu gravei na vida com um arranjo para dois violões com cordas de nylon. Depois virou um negócio meio “tá, pra essa não vamos usar nenhum instrumento elétrico”, então acabou sendo uma coisa com os violões, cordas, percussão e piano. O único instrumento não-acústico foi o baixo, porque ainda não cheguei num ponto de desprendimento necessário para usar o famigerado “baixolão” em uma gravação minha [risos].

Foto: Estevam Romera

“Mácula”

Sounds: “Todo mundo de algo se arrepende”. E você, se arrepende do quê?
Jair:
Quando vocês me perguntam isso, juro que não ocorre nada muito significativo. E mesmo pensando nos erros que eu cometi ou em situações em que eu não me comportei como hoje percebo que deveria, vejo que quase todos me levaram a um crescimento pelo qual eu sou muito grato, então não é exatamente um arrependimento que me tire o sono. Lógico que não tive uma existência perfeita, irrepreensível, mas quando penso nisso a primeira coisa que me vem à mente é aquela música antiga do R.E.M. [“Hairshirt”] em que ele [Michael Stipe] canta “my life/ it’s a beautiful life”. Com erros e acertos, vejo por aí.

Sounds: De que maneira o momento atual do Brasil te inspirou a escrever essas letras?
Jair:
Desde o começo da gestação do último impeachment, eu tenho tido dificuldade em pensar em outra coisa. O atual momento vinha se desenhando desde então. Dentre tudo o que é deplorável, deprimente e desesperador nesse novo contexto político, o que mais me atinge é observar o respaldo popular para essa guinada à extrema-direita e como isso se manifesta na sociedade em si. E como, mesmo morando em outro lugar, eu não consigo me desligar ou me distanciar de tudo isso. Veio daí a ideia para o título do disco. Uma proximidade tão grande que, queira você ou não, te faz parte do que tanto te assusta.

Foto: Fernando Yokota

Sounds: O disco foi escrito já em Los Angeles? Como a mudança para fora do Brasil refletiu na sua criatividade?
Jair:
As bases foram escritas antes. Essa mudança, embora estivesse nos planos, aconteceu de forma meio repentina – aquela coisa, “tem que ser agora, vamo aí”. Então, gravamos as bases de cinco dessas músicas meio que de supetão, no fim de semana anterior à minha mudança. As letras foram iniciadas quando eu estava longe, mas boa parte eu finalizei imediatamente antes de gravar. Em alguns casos, eu dizia para o Zeca Leme, do BTG Studio, que gravou e mixou o álbum, “isso aqui não tá bom. Você pode me dar meia hora pra reescrever tudo?”. Depois disso, caso tivesse tido sucesso com os novos versos e novas métricas, gravava as vozes logo em seguida. Passar a morar em um novo país muda sua perspectiva sobre tudo. A sensação permanente de ser estrangeiro, a necessidades de uma reinvenção pessoal, a distância com relação às pessoas que você ama e às bases da sua formação pessoal, um tipo de solidão e isolamento que você só sente morando em um lugar que não é o seu… tudo isso proporciona uma série de questionamentos. Acho que até por isso vejo as letras desse disco de forma tão distinta de parte considerável do que eu fiz anteriormente

“Gira”

Sounds: Do que se trata essa faixa?
Jair:
A maior parte das músicas sobre relacionamentos amorosos trata ou dos momentos de descoberta, o início da relação, a paixão, o deslumbramento e etc, ou do fim, da dor da superação e tudo mais. Eu quis escrever sobre um momento que raramente é retratado, em que é o amor baseado num conhecimento maior da pessoa com que você está, num compromisso baseado numa aceitação mais realista, sem nenhuma idealização e sem o encantamento inicial, mas em que você ainda se encontra disposto a mudar sua vida e moldar a sua realidade em torno da pessoa com quem você escolheu estar.

Foto: Filipa Aurélio

Sounds: É um disco de história oral bastante presente. O quanto você acredita no poder das narrativas na música?
Jair:
Acredito piamente que não existe forma de texto mais poderosa e de absorção mais imediata do que letras de música. Isso explica por que tantos bons letristas têm uma aura messiânica em torno deles, do Bob Dylan ao Mano Brown, do Victor Jara à Patti Smith. Com alguns bons versos, você pode mudar a visão de mundo de uma pessoa em menos de cinco minutos. Por isso o processo de criação das letras é a etapa mais demorada e que mais me dá dor de cabeça durante as gravações dos meus discos. É uma responsabilidade enorme. Sei que, se não tiver certeza absoluta de que fiz o meu melhor no que diz respeito aos versos que estou cantando, provavelmente essas músicas não farão parte dos shows por muito tempo.

“Lampejos de Lucidez”

Sounds: Esta música nos trouxe Ariano Suassuna, uma certa aridez, brasilidade e um balanço vindo do baião. Faz sentido?
Jair:
Não acho que seria correto da minha parte dizer se uma interpretação qualquer da minha música está certa ou errada, mas nesse caso fico muito feliz com o paralelo. Muito da chamada crise identitária do rock enquanto vertente musical vem do esgotamento de possibilidades dentro dessa roupagem. Quando você pensa que é um gênero musical prestes a completar 70 anos desde o seu surgimento e que boa parte dos títulos mais expressivos, inovadores e influentes dessa escola foram lançados nos anos 1960 e 1970, muitos deles há aproximadamente meio século, não dá pra ignorar a sensação de que de fato tudo já foi feito. A saída para ter algum frescor tocando esse tipo de música hoje em dia é aplicar abordagens vindas de outras escolas e expressões artísticas. Não que eu esteja dizendo que estou perto de conseguir sequer um sopro de originalidade, mas é um desafio que está o tempo todo na minha mente durante a fase de composição e gravação.

E sem querer apelar para o lance “Brasil acima de todos” tão lamentavelmente em voga hoje em dia, acho interessante como as últimas gerações de músicos daqui, nos mais diferentes estilos, tentam fazer algo que seja menos derivativo da influência norte-americana e inglesa, que tenha ao menos algum reflexo da vivência no Brasil. Se eu conseguir realizar pelo menos uma música que vá ao encontro dessa mentalidade, já é algo a ser comemorado.

Foto: Meredith Adelaide

Sounds: Este é um disco que te ajudou a expurgar angústias pessoais?
Jair:
Sim, sem dúvidas. Além de todo o peso emocional das letras, a realização deste disco foi algo a que eu me agarrei num período de mudanças muito profundas na minha vida. Mas acredito que os shows costumam funcionar melhor quando se trata dessa coisa de exorcizar angústias e tormentos pessoais, porque tem todo o caráter coletivo, de dividir esses sentimentos com pessoas que foram até ali te ver justamente por se identificarem com o que está sendo dito nas canções. Estúdio é um ambiente muito mais controlado e racional, em que você tem que prestar atenção a cada mínimo detalhe o tempo todo. Então acho que os shows baseados nesse disco ajudarão mais nesse sentido do que o que foi a etapa de gravação.

Sounds: A melancolia parece prevalecer nas melodias. Isso se relaciona com as mensagens das letras?
Jair:
Acho inevitável esta ligação. Como na maior parte dos casos as letras costumam vir bem depois das músicas, de certa forma é como se eu tentasse traduzir em palavras o estado de espírito que o instrumental me passa.

Sounds: É interessante quando você diz “hoje eu nasci de novo”. Onde se localiza esse hoje dentro dessa narrativa?
Jair:
Os versos dessa música falam sobre muitos tópicos diferentes: as armadilhas do nacionalismo, o quão falha é a premissa de “meritocracia”, a sobrecarga de informações da era digital e como isso afeta a nossa saúde mental, a revolta contra instituições que em teoria deveriam nos proteger e acabam por cumprir um papel oposto… esse último verso vem como uma reação a tudo isso, eu imagino. A percepção de que você continua vivo apesar de todos os desencantos inerentes ao envelhecimento e a um conhecimento mais profundo de como o mundo funciona.

Foto: Felipe Faraco

“Hino dos Estados Unidos Como Toque do Seu Celular”

Sounds: Qual é a proposta desta faixa?
Jair:
Bom, é uma quebra estética e rítmica com o restante do álbum. Inicia a segunda metade do repertório com uma sonoridade que o ouvinte não tinha ouvido no disco até então. Eu tinha essa base gravada só com um violãozinho meio vagabundo, uma coisa bem melancólica, quase fúnebre, que eu achava muito bonita. O problema é que eu não conseguia pensar numa melodia de voz que casasse com aquilo, então resolvi partir para um arranjo baseado em colagens. Gravei a voz em casa, num gravadorzinho de fita cassete, justamente para dar essa distorção e esse efeito sem muita inteligibilidade. Adicionei os ruídos do próprio gravador e a introdução de um antigo documentário relacionado à ditadura militar no Brasil. Na época eu estava ouvindo coisas que me remetiam a essa estética, e fiquei contente de termos conseguido finalizar essa faixa – por muito pouco ela não ficou de fora (foi a última a ser totalmente gravada). É um dos meus momentos preferidos do disco.

“Rente”

Sounds: O que você quer dizer com “eu quero que você se enfrente”? É algo literal?
Jair:
Essa é meio literal sim. Me parece incrível como as pessoas evitam o autoconhecimento, a série de conflitos internos que isso traz, mas também uma possível resolução desses mesmos conflitos e uma consequente libertação de amarras internas. Como é um processo muito doloroso, vejo um comportamento mais baseado na coisa toda do dedo em riste para outras pessoas do que esse exercício de tentar conhecer a si mesmo e evoluir a partir daí. Acredito que isso é muito importante no convívio com os outros. Eu meio que cresci expondo inseguranças e medos nas minhas músicas, cantando isso rotineiramente para outras pessoas ouvirem e julgarem. De alguma forma meio estranha, no fim acabou me ajudando, aprendi muito sobre mim mesmo, minhas limitações e virtudes, como lidar com elas e como interagir com os sentimentos dos outros. É como diz uma das outras músicas, continuo num esforço consciente para ser uma pessoa melhor dentro das minhas possibilidades e não repetir erros que eu já cometi, e isso vem também desse, sei lá, “autoenfrentamento”. Enfim, posso estar saindo do assunto, mas acho que tava pensando nisso quando escrevi esse verso.

Sounds: Ainda sobre a faixa-título, “Rente”, o disco, brincando um pouco com uma frase da letra, pode também ser considerado como um novo começo. E sendo assim, a destruição de um império que a cada disco se renova, renasce?
Jair:
Não tinha pensado sobre essa possível interpretação. Definitivamente não era o que eu tinha em mente, mas certamente se aplica. De fato é um ciclo novo, em que o passado é ignorado e você tenta construir algo com o que tem de novo. Olha, taí, gostei [risos].

Foto: Fabricio Viana

“Escalas”

Sounds: Como surgiu a ideia de trazer um arranjo sinfônico para essa faixa?
Jair:
Veio muito da vontade de colaborar novamente com o Raphael Evangelista, um ótimo violoncelista que conheci nas gravações do Trovões a Me Atingir. Ele acabou tocando em duas faixas dessa vez, “Escalas” e “Veemente”. Desde o começo da pré-produção ficou claro que este seria um disco de sonoridades distintas, então teve um esforço consciente de explorar abordagens e estéticas quase extremamente opostas umas às outras. Veio daí a ideia de tratar essa faixa com uma delicadeza que falta a outras desse mesmo repertório.

Sounds: Tendo como base uma das frases da letra dessa música, quais os desconfortos que você mais teve que aprender a lidar?
Jair:
Alguns, mas o desconforto de que essa música trata é o do imigrante, do estrangeiro, de alguém recém-chegado numa terra nova. Conheci outras pessoas em situações parecidas e todas descreveram um tipo de isolamento, de solidão, que é muito específico. É como se todas as referências da sua existência fossem apagadas e você tivesse que começar novamente num lugar em que ninguém sabe nada sobre você. No caso de passar a morar em um país novo depois de adulto, você acaba tendo que redescobrir, reinventar ou redefinir coisas básicas a seu respeito para conseguir se encaixar ao lugar. Tanto que o título original dessa era para ser algo como “Escalas diferentes de peso, distância, altura”, em referência às coisas práticas do dia a dia que mudam e que servem como um paralelo para questões mais existenciais. Acabei encurtando para “Escalas” porque não queria mais um título de música quilométrico para esse disco, e também porque é uma canção muito mais emocional do que esse nome original poderia sugerir.

“O.H.R.E.U.C.S”

Sounds: Poderíamos dizer que homens reprimidos têm decidido o destino de muitos brasileiros?
Jair:
Poderíamos e deveríamos. Dando o devido crédito, tirei essa frase de um ensaio sobre a obra da artista plástica Terezinha Soares e construí a faixa em torno disso. Claro que existem mil interpretações possíveis e discussões que podem ser tiradas dessa frase isolada, mas a discussão sobre “masculinidade tóxica”, para usar um termo amplamente utilizado hoje em dia, e sobre os efeitos a longo prazo da repressão emocional e sexual na vida do homem comum, é cada vez mais necessária. Estamos vendo diariamente exemplos e mais exemplos do quão nocivo isso é não só num âmbito individual, mas também social, coletivo. Quando pessoas com esse perfil assumem papéis de liderança ou têm algum tipo de poder em mãos, as consequências tendem a ser catastróficas.

Foto: Ailton Lucena

“Tudo Grita”

Sounds: Quais escritores inspiram sua lírica?
Jair:
Como pelo menos até agora os únicos textos que eu tornei públicos foram letras de música, acabava buscando inspiração em escritores que se expressassem de forma sucinta ou não-convencional. Então no começo eu lembro de ler as coisas do Gregory Corso, do Faulkner, do Hemingway e da Clarice Lispector com bastante atenção, tentando absorver alguma coisa daquilo para a minha própria escrita. Na época em que eu comecei a escrever essas letras, lembro de estar muito impactado pelo “A Resistência”, do Julián Fuks, e pelo “As Coisas que Perdemos no Fogo”, da Mariana Enriquez. Além de todo o entorno político dos lugares em que morei nos últimos anos, acho que esses dois títulos me deram vontade de abordar esses temas mais claramente nas minhas letras. Além desses, alguns escritores norte-americanos mais jovens que tratam da tensão social e racial nos EUA, especialmente a Morgan Parker e o seu “Other People’s Comfort Keeps Me Up at Night”, me fizeram tentar usar um pouco mais de humor, ainda que seja o meu senso de humor estranho [risos] ao falar de temas pesados.

Sounds: Os tempos aqui são bem bonitos, com dinâmicas bem marcadas. Aqui a ideia era dosar a melancolia com a potência?
Jair:
Não conscientemente, mas gostei. É uma boa definição para grande parte dos artistas que eu ouço. Vou tentar lembrar disso [risos]

Jair Naves e Zeca Leme no BTG Studio

“Sonhos se Formam Sem o Meu Consentimento”

Sounds: Há várias menções à religiosidade no disco. Os questionamentos são literais ou uma metáfora para outros conflitos?
Jair:
Nunca são literais, até onde consigo lembrar. A função social da religião, os dogmas todos, a capacidade de persuasão e controle dos seus líderes, como muita coisa é distorcida por interesses políticos, todos esses são temas que me interessam muito desde sempre. Letras antigas minhas já traziam alusões a isso, em versos que falavam de coisas como “reza de ateu” em “Araguari” e todo o temor a Deus de “Guilhotinesco”, mas acho que nesse disco esse lado acabou aparecendo mais pelo momento atual que estamos vivendo no Brasil – todo o pavor desse “charlatanismo institucionalizado”, como diz uma dessas novas letras. Para citar mais um livro, faz tempo que estou tentando avançar em “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, do Daniel Johan Goldhagen. Acabo parando sempre por notar semelhanças perturbadoras entre a mentalidade de parte da sociedade alemã daquela época e o que se vê por aqui hoje em dia. Mas até onde pude ler, vi relatos de pessoas que se arrependeram de terem apoiado as decisões daquele governo. E foi um pouco daí que tirei toda a parte do “meu pai, perdão”. Na religião como anestesia para a consciência, como atalho para uma redenção imaginária ou coisa do tipo.

Sounds: Qual a ideia que você queria transmitir com o nome, capa e arte gráfica do disco?
Jair:
A ideia do nome é a mesma da capa: de uma proximidade extrema com o que você está tentando entender, criticar ou analisar. Como se um distanciamento necessário para uma análise mais profunda simplesmente não fosse possível, a ponto de você se perguntar até que ponto você faz parte do que tanto te intriga ou incomoda.

Sounds: Há espaço para esperança nesse novo lançamento?
Jair:
Claro. Tanto quanto há espaço para esperança nesse novo contexto social ou em outros momentos conturbados no decorrer da história. Sempre houve, sempre haverá.

Foto: Patrícia Caggegi