Invertemos novamente os papéis. Como já é tradição, Amanda escreve sobre os discos preferidos do Vina, e ele escreve sobre os discos preferidos da Amanda.
Listas de melhores ou piores discos não fazem muito sentido pra gente. Não vemos música como competição. Música é algo único e subjetivo. Nem pior, nem melhor. Música, apenas. Tem suas belezas em diferentes escalas pra quem é impactado por ela.
Por esse motivo, nossa lista é sobre os discos de que a gente mais gostou de ouvir durante o ano. E para que isso fique divertido, trocamos os títulos para ver as impressões que cada um gera no outro, abastecidos das sensações lindas e subjetivas que só a música pode prover.
Os discos mais legais de 2019 do Vina descritos pela Amanda:
DARKTHRONE – OLD STAR
Ainda que não tenha surpreendido o fato de o Darkthrone mais uma vez fazer um disco excepcional e figurar novamente na lista do Vina, a surpresa veio pelas músicas que soaram vigorosas e diferentes. Estão mais cadenciadas, lembram Motorhead em certa medida e grudam na cabeça após duas ouvidas. Não é difícil imaginar por que o Vina gosta tanto do Darkthrone. A relação do duo com a música parece ser bastante criteriosa, em que os novos sons só têm sua presença justificada caso despertem alguma emoção em seus criadores. Parece que Fenriz e Nocturno estão sempre em busca da essência que os colocou como Darkthrone pela primeira vez, e esta “romantização” de certa forma se antagoniza com a música commodity que vemos em tantas outras bandas.
KAREN O & DANGER MOUSE – LUX PRIMA
Quando soube que a Karen O tinha se juntado ao Danger Mouse para um disco, imaginei aquela típica soma de potências. Karen O é uma força da natureza com sua voz e postura no palco, e o Danger Mouse, produtor que transforma tudo em ouro, fez com o Sparklehorse o Dark Night of the Soul (2010), um disco de que gosto bastante. Lux Prima encantou o Vina, e imagino que a pegada Motown atualizada, bem presente nos discos do Michael Kiwanuka que o Danger Mouse produz, traga aquele selo de qualidade e sofisticação que alça uma colaboração artística ao status de atemporal.
THE WRAITH – GLOOM BALLETT
Foi bem legal testemunhar a alegria do Vina ao saber que o The Wraith lançaria seu primeiro disco cheio este ano. O EP Shadow Flag, de 2017, tocou bastante aqui em casa, e restava saber se o mesmo fôlego seria mantido com mais músicas. Tudo indica que sim. Por mais que eu não seja fã do pós punk mais puro, soturnão e trevoso (eu gosto dos híbridos), percebo que as faixas aqui têm uma identidade própria bastante reconhecível, com dinâmicas diferenciadas, quebras interessantes e sem aquelas formulinhas que engessam uma sonoridade. Imagino que vá agradar também quem gosta do New Model Army e do Sisters of Mercy.
ANGEL WITCH – ANGEL OF LIGHT
Eu espero que a esta altura do campeonato vocês já tenham antecipadamente perdoado as abobrinhas que escrevo sobre death metal, black metal, heavy metal, hard farofa, metal classicão de youtube, brutal death metal, death metal para batizados e coquetéis, metal espadinha e os tradicionais guturais advindos da abertura de um vidro de palmito. Dito isso, afirmo timidamente que escutei coisas do Iron Maiden nas cavalgadas do Angel Witch, um vocal que me lembrou Hellacopters e umas levadas de Black Sabbath, Judas Priest e Motorhead no meio do caminho. Então, tenho a impressão de que vocês serão muito felizes ouvindo este disco, pois ele parece ser uma consequência criativa do legado deixado pelos deuses universais da música.
POSSESSED – REVELATIONS OF OBLIVION
Sempre fico pensando no tipo de combustível que alimenta a permanência de bandas ao longo de décadas não por seus repertórios antigos, mas pela capacidade de gerar músicas novas e memoráveis, mantendo em curso a criatividade que marcou seus começos. O Possessed parece ser deste tipo, porque este disco me causou uma impressão de fúria renovada e desbravadora. Claro que embalada por muita velocidade, solos de guitarra de dedos coreografados que minha artrose imaginária jamais vai conceber e umas viradas absurdas na bateria. Sempre admirei a lealdade incondicial dos fãs de metal às suas bandas favoritas, e imagino que bandas como o Possessed, dispostas a manter a chama criativa acesa, justifiquem esta conexão.
BETH GIBBONS & THE POLISH NATIONAL RADIO SYMPHONY ORCHESTRA (CONDUZIDA POR KRZYSZTOF PENDERECKI) – SYMPHONY OF SORROWFUL SONGS
Poucas vezes na vida assisti a uma orquestra, mas quando isso ocorreu, mal pude conter a emoção. Não sei se pela concentração que ela atrai, se pelo movimento de construção coletiva que ela deixa evidente, ou se pelo papel crucial do silêncio respeitoso, ou se pela sensação cinematográfica que ela causa ao me deixar a sós com a música e o meu imaginário. A partir disso, suponho o tipo de experiência quase que sobrenatural que deve ser assistir à apresentação deste disco, de se deixar levar pela admiração silenciosa e ser capturada pela tristeza que a voz de Beth evoca. Ouvindo este disco, penso que algumas belezas simplesmente não cabem no meu acervo de palavras.
DUPLO – DOR, DOR, DOR, BB
Quatro músicas bastaram para entregar os intentos e realizações sonoras deste quinteto. Em uma primeira escutada do EP, você pode até identificar traços de filiação aos lampejos dançantes de Gang of Four, ou ao pós-punk seco e apoiado no baixo do Mission of Burma, ou à virtuose semicaótica do The Ex, mas o que comparece como lembrança (subjetiva, claro) logo cede lugar às impressões de um som próprio. O independente brasileiro vive uma safra muito rica de bandas dedicadas a usar a distorção não como anexo de uma música, mas como fundação, e deve ser bem empolgante poder conferir tudo isso ao vivo.
QUESTIONS – LIBERTATEM
O Questions é uma banda bastante querida por nós, especialmente por seus traços de resistência genuína. A bagagem de pelo menos duas décadas deu ao quarteto paulistano maestria e familiaridade na condução do hardcore, mas sem qualquer possibilidade de se “acostumarem” com os absurdos que motivam as composições das músicas. Há muito para fazer e o Questions permanece sensível e alerta ao seu tempo, fazendo da luta um verbo coletivo. Libertatem traz uma novidade significativa, já que é a primeira vez que cantam em português. Faixas como “Lutar”, “Florar” e “O Ato de Ousar” acendem a esperança como só a música faz. Em meio aos discursos de ódio que tanto presenciamos em 2019, é um alívio revigorante poder evocar, em coro, um outro discurso, por um mundo mais possível e agregador.
SOUL GLO – THE NIGGA IN ME IS ME
Em Minas Gerais temos uma expressão que resume nossa reação diante de algo de outro mundo. “Nussassenhoradabadia”, também conhecida como “nussa” ou, simplesmente, “nu!”, é o tipo de qualificador adequado para o som do Soul Glo. O nome é sensacional; o som é altamente fronteiriço, com referências que me lembram tanto o punk costa leste anos 80 quanto o rock doidinho de Rhode Island ou o experimentalismo de nomes como o Death Grips. Ou seja, uma receita muito saborosa decomposta em ingredientes não necessariamente novos, mas que certamente ganham outra percepção quando usados para outras misturas. Tenho a impressão de que este é um disco que vou ouvir ainda mais ao longo dos anos.
GREYS – AGE HASN’T SPOILED YOU
O Greys já frequentou nossos ouvidos por aqui quando o Vina os trouxe para nosso especial sobre noise rock. Era esta a linguagem que caracterizava o Outer Heaven, disco de 2016. O tempo passou, o noise ainda marca múltiplas camadas, mas a musicalidade preencheu boa parte dos postos então reservados aos ruídos. Este parece ser o disco que encapsula os talentos que nem sequer foram pretendidos pela banda de modo consciente. Como se estes canadenses tivessem encontrado seu lugar de autoria e se surpreendido em meio à boa e velha prática de fazer música. As dinâmicas estão mais elaboradas, o cancioneiro é mais explícito e a captação dos instrumentos e voz é um ponto muito alto – vide “Constant Pose” e “Kill Appeal”. Curiosamente, sinto a banda bem mais introspectiva que antes. Para nossa sorte, a introspecção nos empresta aquela rara beleza de poder se recolher – neste caso, na excelente companhia de Age Hasn’t Spoiled You.
MYLINGAR – DÖDA SJÄLAR
Você tá está há 45 minutos preenchendo a gloriosa declaração do imposto de renda, cuidando do lugar da danada da vírgula como quem segura um recém-nascido, e daí aparece aquela mensagem de que não haverá restituição: você vai ter é que pagar imposto. Vida furiosa, tenebrosa, nada dá certo nesse trem. Döda Själar é a trilha dessa e de outras agonias, aquele descarrilamento de esperança e de vontade que só mesmo a vida sendo a vida é capaz de provocar. Claro, o que é um IR-bomba perto da virulência deste 2019, não? Num dos raros momentos em que consegui legendar o vocal, rolou um “there is no hope” de precisão cirúrgica. O cancioneiro da putrefação está muitíssimo bem representado por estes suecos.
Os discos mais legais de 2019 da Amanda descritos pelo Vina:
LIGHTNING BOLT – SONIC CITADEL
Entre algumas piadas internas, a gente costuma brincar chamando essas bandas de som mais torto, de “rock doidinho”. Mas isso é pouco para o Lightning Bolt. Talvez eles estejam mais para “rock doidão”. Pensando bem, seria raso demais também. Na real eles são os donos de um manicômio ruidoso, que nesse último disco, conseguiram forjar um encontro entre o desespero e a melodia. E o que antes parecia um efeito colateral por conta da ingestão errada da pílula da Matrix, agora soa até bem torneado, com uma sonoridade menos, digamos, epiléptica. Essa dosagem igualitária entre peso, barulho e melodia, somadas a referências ao Van Halen e Hüsker Dü nos nomes de duas das faixas dão um charme a mais para o disco. Fica dúvida quase shakespeariana: O Lightning Bolt está mesmo oferecendo canções mais palatáveis ou nosso tempo está tão longe da sanidade que um disco como Sonic Citadel desce menos estranho? Eis a questão.
THE GOTOBEDS – DEBT BEGINS AT 30
É interessante escrever sobre algo que não ouvi nada, livre de qualquer vício, munido somente da sensação que o disco vai me transmitir. De antemão, eu já tinha o entusiasmo da Amanda em relação a banda e nisso eu confio de olhos fechados e ouvidos dispostos. Honestamente, o nome da banda não é lá dos melhores. Parece uma grande sacadinha publiça, cria de mau gosto do véio da Havan para alguma filial que venda colchões. Mas, vale o máxima: “jamais julgue um disco pelo nome da banda”, ou algo do tipo. Apertei o play e já de início o Gotobeds me levou de volta para a segunda metade da década de 90, tempo que a gente gosta muito por aqui. A sonoridade também parece vir do pós punk praticado pelas bandas do início dos anos 80. Em alguns momentos me lembrou Bauhaus, o que pra mim é um presentão. Mas o Gotobeds está mais para o punk do que para o pós punk relacionado ao gótico. Acho que ainda vou ouvir bastante esse disco.
POLVO – S/T
Até consigo escutar a voz marcante do grande Neguinho da Beja Flor: “Uuuuuolha a década de 90 aí geeeeeente”. Das então chamadas guitar bands, passando pelo death metal e grindcore, é inevitável. É um tempo implícito no nosso jeito de ouvir e falar sobre música. Dentro disso, o Polvo, banda de que a Amanda gosta muito, ajudou a formatar o rock alternativo. Ela me contou que esse último lançamento dos caras é parte de uma série chamada Born Under a Good Sign, em comemoração aos 30 anos da Merge Records. Os discos foram vendidos via clube de assinatura e parte do lucro foi doado para uma ONG que oferece serviços jurídicos gratuitos para refugiados que vivem no Texas. Ou seja, as minhas primeiras impressões, de um disco meio morno, foram soterradas pela finalidade das músicas contidas ali.
DRAHLA – USELESS COORDINATES
O DNA inglês acusa quando uma banda vem daquele país. É uma sonoridade muito característica e não há escapatória pra isso. E não deu outra, numa pesquisa rápida aqui, confirmado: o Drahla vem de Leeds, terra de nomes incríveis como Sister of Mercy e The Mission. Mas, embora tenha tal nacionalidade, parece ter adotado o idioma dos reis do rock alternativo americano, o Sonic Youth, o que funciona muito bem. O timbre de voz da vocalista me lembrou Cansei de Ser Sexy (risos). Talvez seja o jeitão blasé de cantar. “Useless Coordinates” não é música para um churrasco sábado a tarde. Mas para um domingo funcionaria bem.
THE AUSTERITY PROGRAM – BIBLE SONGS 1
Outra banda que me foi apresentada pela Amanda. Esse disco novo parece um entroncamento do Nine Inch Nails com Unsane, o que é bem legal. Acho que o ano foi tão pesado que a lista dela tá repleta de discos ruidosos reafirmar isso sobre o do Austerity Program tornaria minha escrita repetitiva. Mas dá pra dizer que aqui a banda conseguiu musicar um pouco da doença dos nossos dias. Incômodos, frenéticos e ansiosos.
THE ST PIERRE SNAKE INVASION – CAPRICE ENCHANTÉ
Eu adoro quando a Amanda chega com um nome trazido lá das profundezas da música subterrânea. E o St. Pierre Snake Invasion (que nome doido), me trouxe uma reflexão. Chega um tempo que é preciso escolher com o quê você vai ficar puto. Ficar puto com tudo, o tempo todo, é uma virtude da juventude. Depois disso você fica mais seletivo quanto ao que vai efetivamente te arrancar a calma. O St. Pierre Snake Invasion me parece uma banda que está puta da vida com tudo e com todos, o que pode ser bom ou não, depende do ponto de vista. Há momentos de melodia nessa raiva toda, mas ainda assim eles parecem tão espinhentos quanto os primeiros discos do Dillinger Escape Plan, The Chariot e Norma Jean, o que não é algo negativo, visto que a música precisa dessa raiva descontrolada que reverbera entre gritos, batidas descompassadas e ruídos bem vindos.
SHARON VAN ETTEN – REMIND ME TOMORROW
Apesar do beat, “No One’s Easy to Love” tem uma tristeza tão presente quanto aquela boa nova enviada por aquele parente que você adora, via whatsapp, defendendo a reforma da previdência ou qualquer outra pataquada dos dias que correm. A diferença é que com a música de Sharon Van Etten a gente consegue conviver e procurar algo que justifique a melancolia presente ali. E é mesmo uma música bem bonita. Me lembrou “Crush #1”, do Garbage, que foi trilha de uma das releituras de Romeo e Julieta.
Mas Remind Me Tomorrow é um disco que funciona como álbum, carregando seu início, meio e fim com destaque para a já citada “No One’s Easy to Love”, “Your Shadow” e “Comeback Kid”, que me trouxe lembranças de Goldfrapp e um timbre de voz puxado para Siouxsie and the Banshees. Sharon não traz nada de muito novo. Seus meandros já me foram apresentados por cantoras como Emily Jane White e Feist, que a Amanda tanto gosta. Mas Remind Me Tomorrow é um disco legal de ouvir.
TYLER, THE CREATOR – IGOR
Como a Amanda diz: “não tenho as enzimas necessárias” para esse tipo de rap. Não me pega, mas nem por isso é algo ruim. Existe qualidade em algo que você pode não gostar. E já tem gente demais se ocupando em apontar o que classificam como ruim diminuindo a importância de quem, e com quem, esse disco se relaciona. Espalhar por aí “ah, isso é uma merda!” não soma em nada, além de não transformar alguém no Yoda da música. Pensando nisso, resolvi ouvir o disco do Tyler, the Creator e escrever aqui o que encontrei de interessante no disco. De cara tive a sensação de já ter ouvido o refrão de “Earfquake” em algum lugar. E foi das discotecagens que fazemos por aí porque a Amanda sempre inclui essa faixa no set dela. Seguindo na trilha de comentar o que é bom, o flow de “A Boy is a Gun”, o beat final de “Gone, Gone/ Thank You” e a orquestração de “Are We Still Friends” são momentos interessantes. Viu só. Eu poderia tá matano, poderia tá robanu, achando Igor um disco merda, mas preferi o movimento de procurar por algo bom e não dar vida às impressões negativas.
TROPICAL FUCK STORM – BRAINDROPS
Eu piro nesse nome: Tropical Fuck Storm. Lembro do entusiasmo da Amanda quando me apresentou a banda. Som caótico, distorcido, barulhento, refrescante comparado ao rock meio bunda mole que hoje assusta pouco. O que mais gostei nesse disco é que ele me passa a sensação de estar sempre próximo a um fim eminente, épico. Como se estivéssemos de frente aos créditos finais de um filme atordoante. O Tropical Fuck Storm é pra ouvir alto.
SPIELBERGS – THIS IS NOT THE END
O emo e a Amanda formam um eterno jogo de “está contido” e “contém”. E bastam alguns minutos pra sacar que esse tal Spielbergs é a cara dela e uma dica da boa. Gostei do som. Tem realmente uma energia emocional potente.
Uma banda que vem da Noruega (terra do black metal), atende pelo nome do diretor que trabalhou em E.T e Star Wars, que traz no último disco uma música chamada “McDonald’s (Don’t Fuck up My Order)” e que me parece próxima à estética melódica de nomes como Jimmy Eat World, Culture Abuse e até o lado mais barulhento e menos experimental do …And You Will Know Us By The Trail Of Dead. No mínimo uma coleção de referências interessantes. E o resultado foi positivo. Gostei do disco.
Nossa unanimidade em 2019:
JAIR NAVES – RENTE
A urgência de se expressar encontra a emergência de ter sua dor validada por um outro. Assim, artista e público se encontram em um mesmo terreno de questionamentos, tentando entender as angústias de seu tempo e se solidarizando com as dúvidas. É esta a sensação que temos ao escutar as canções de Rente neste 2019, ano em que as palavras de quem reclama direitos são silenciadas e os gritos de ódio se fazem ouvir sistematicamente. O que faz aquele que tem poder? Com a música, podemos fazer com que imperem os gritos por dignidade, a convivência entre diferentes, o alívio em uníssono. A arte continua sendo nossa abertura quando tudo parece se fechar; não à toa, os discos sempre foram nossas janelas para continuar resistindo e insistindo. Eis aqui um disco que pode lhe ajudar a processar os sentimentos confusos deste ano.