Entrevista: 30 anos da Merge Records (Laura Ballance e Mac McCaughan)

In Entrevistas

Foto: Sounds Like Us

Amanda Mont’Alvão e Vinicius Castro

Em um espaço de 30 anos, quantas bandas terão começado e quantas terão encerrado suas trajetórias? No meio disso, quem terá registrado suas músicas para que outros as conheçam e prolonguem suas existências? Para que os interessados no mundo todo tenham a oportunidade de se encantar com uma banda em um tempo próprio, particular e que independe de uma estratégia de lançamento?

Uma gravadora independente lida não apenas com fitas k7, CDs, discos de vinil, material promocional e distribuição em uma realidade de orçamento apertado e pouca mão de obra. Ela acomoda sonhos, desafios e (muitas) expectativas. Você já leu aqui sobre a Dischord, gravadora de Washington, D.C que, em 1980, trouxe ao mundo a criatividade pioneira dos artistas locais como Bad Brains, Minor Threat, S.O.A e Fugazi.

Desta vez, compartilhamos com vocês nossa admiração pela Merge Records, que desde 1989 nos presenteia com uma curadoria calcada em um critério muito simples: os artistas que entusiasmam Laura Ballance e Mac McCaughan – ela, baixista, e ele, guitarrista e vocalista de uma das nossas bandas favoritas, o Superchunk.

Ambos nos receberam em 2015 no escritório da Merge, em Durham, Carolina do Norte, com uma afetuosidade que escancara o quanto o negócio deles é baseado em relacionamento e confiança. Não à toa, a Merge foi ou é a casa de Arcade Fire, Destroyer, Bob Mould, Seaweed, Neutral Milk Hotel, Spoon, Archers of Loaf, Sugar, Lou Barlow, Fucked Up, Magnetic Fields, She & Him, Waxahatchee, Redd Kross e do próprio Superchunk, só para citar alguns.

Olhando em retrospecto, a história da gravadora não esconde os percalços e a despretensão. A ideia era lançar, por conta própria, as fitas k7 e os 7″ de bandas de amigos ou nas quais eles estavam envolvidos, como Metal Pitcher, Bricks e Wwax. O berço foi Chapel Hill, cidade que compõe o chamado “Triângulo” com Durham e Raleigh (esta, por exemplo, é a cidade-natal do Corrosion of Conformity), e que tinha a Pepper Pizza, onde Mac e Laura trabalharam juntos. Ele, já envolvidíssimo com bandas e shows; ela, uma apreciadora de música que jamais sonhara em pisar em um palco. O resto é a história imensa e incrível que conhecemos como Superchunk, e também o nascimento da Merge.

Muitos dos ricos detalhes desta história podem ser encontrados no livro Our Noise: The Story of Merge Records (Algonquin Books, 2009), escrito por John Cook em parceria com Mac e Laura. Mas há uma outra parte, inédita, que gostaríamos de dividir com vocês neste momento, advinda da entrevista que fizemos com eles. É uma narrativa de fãs de música, alimentada pela honestidade com que os dois tratam os artistas e a cordialidade com que lidam com as pessoas envolvidas. Com vocês, os belíssimos 30 anos da Merge Records, por Laura e Mac – ao fim da entrevista, uma playlist com 30 músicas da gravadora.

Foto: Sounds Like Us

Sounds Like Us: Como vocês chegaram até a atual localização da Merge, em Durham?
Laura Balance: Eu me mudei para uma casa diferente e havia uma sala extra nela, onde fizemos nosso escritório. Depois disso nos mudamos para Carboro, onde ficamos por alguns anos, até irmos para Chapel Hill, a cidade vizinha, pois precisávamos de mais espaço. Chapel Hill é onde fica a UNC, a universidade que frequentei. Acho que passamos por 4 lugares diferentes antes de comprarmos esse prédio em Durham, em 2000.

Sounds: Durham é muito diferente de Chapel Hill?
Laura: Raleigh está mais para uma cidade e Chapel Hill, uma cidadezinha. Nestes termos, Durham fica no meio.

Mac McCaughan / Foto: Adam Goldberg

Sounds: Quando vocês vieram para Durham, havia lugares para tocar e assistir a shows?
Laura:
Acho que hoje há mais lugares em Durham e Chapel Hill do que em 89, quando começamos. Naquela época, os locais principais eram o Cat’s Craddle, em Carboro, e The Brewery, em Raleigh, para shows de punk rock. Aqui em Durham tinha um lugar onde os alunos faziam shows na Universidade Duke, na chamada Duke Coffe House. Você acabava tocando em festas em casas ou em pequenos bares que nem sempre tinham shows e provavelmente não tinham palco ou pagamento. Era algo que fazíamos apenas pela diversão. Mas agora há mais locais.

Sounds: Quantos anos você tinha quando veio a Chapel Hill e formou o Superchunk e a Merge?
Laura:
Eu era de Atlanta. De lá me mudei para Raleigh, com minha mãe, onde fiquei um ano. Ainda estava no colegial naquela época. Fui fazer faculdade em Chapel Hill, provavelmente quanto tinha 18 anos. Em 1989, quando começamos a Merge e o Superchunk, eu tinha 21.

Laura em 1986 / Foto: Dea Bacchetti; cortesia de Scott Williams Archives / Reprodução: Our Noise: The Story of Merge Records

Sounds:  Você se sentiu pertencente a Chapel Hill, considerando toda a cena musical que tinha lá?
Laura:
No começo, não, pois eu morava em Atlanta, que é uma cidade maior e, portanto, era meio que mais fácil de ser esquisita e invisível ao mesmo tempo. Quando me mudei para Raleigh, eu era uma gótica com aparência esquisita e me sentia como se estivesse rodeada de rednecks e caipiras. Isso me dava um pouco de medo. Mas não demorou para que eu encontrasse outros jovens que gostavam das mesmas coisas que eu, e aos poucos fui me sentindo mais à vontade. Todos se apoiavam muito e não tinha aquela divisão em facções, tipo punks e góticos. Era todo mundo misturado. 

Sounds: Tivemos essa impressão porque ao circular nas ruas daqui, que são bem quietas, nos perguntamos onde estariam os porões em que alguém estivesse fazendo música. Você precisa se aproximar bastante para perceber.
Laura:
Isso, não é algo visível.

Sounds: Curiosamente, hoje quem vive em Nova York ou Los Angeles experimenta essa sensação de invisibilidade, já que tem muita gente fazendo música por lá. É como se nas cidades pequenas houvesse um sentimento de “aqui a gente pode ser alguém”.
Laura:
Definitivamente você tem mais chance de encontrar sua base de fãs em um local menor. Faz lembrar aquela expressão “você não consegue ver a floresta do topo das árvores porque está no meio dela”. Após alguns anos da criação do Superchunk, assinamos com a Matador para lançar nosso disco e ouvimos algumas pessoas perguntarem por que não nos mudávamos para Nova York. Isso era bem comum. E a gente sempre se perguntava “por que nos mudaríamos para Nova York?”, já que nem sequer conseguiríamos bancar a banda por lá. Viver aqui é barato e lá é caro. Se você mora em Nova York e quer ensaiar, é preciso alugar um local de ensaio e carregar todos os instrumentos no metrô. Fica bem mais complicado. Viver aqui era muito mais fácil. Tudo aqui é tranquilo e relativamente barato. Era bem mais em conta, mas está ficando mais caro porque mais pessoas estão vindo pra cá. Não acho que teríamos conseguido fazer a Merge e o Superchunk crescerem da maneira como cresceram se morássemos em outro lugar ou em uma cidade grande. Foi necessário viver em um lugar pequeno.

Jack McCook, Laura e Mac tocando com o Chunk (nome anterior do Superchunk) no CBGB, em 1989 / Foto: Elizabeth Ward / Reprodução: Our Noise: The Story of Merge Records

Sounds: Ainda no fim da década de 80, enquanto o Sonic Youth estava em Nova York, uma cidade grande, o Superchunk e muitas bandas relacionadas a vocês surgiram em cidades pequenas, criando uma definição própria de criatividade, musicalidade e senso de pertencimento. Você vê isso acontecendo hoje?
Laura:
Definitivamente sim, tanto aqui quanto em Chapel Hill. Há muitas bandas e as pessoas estão expressando sua criatividade de várias formas diferentes. Não precisa ser necessariamente em uma banda, isso acontece também com quem deseja uma carreira em arte.

Sounds: Você acha que a Merge possa ser responsável por isso?
Laura:
Não sei, é estranho se colocar como responsável por algo assim, mas talvez a gravadora tenha ajudado. Quanto mais exemplos de pessoas conseguindo fazer o que sempre sonharam, mais você se sente encorajado.

Laura e Mac, em 1991 / Foto: Jennifer Barwick / Reprodução: Our Noise: The Story of Merge Records

Sounds: Como você lidou com os custos da gravadora e da banda? Você tinha um emprego de meio período?
Laura:
Quando não estávamos em turnê, eu tinha um emprego normal e trabalhava o quanto podia. Trabalhei na copiadora Kinko’s por muito tempo  e eles foram incríveis ao deixar os funcionários saírem para turnês. Eles tinham uma espécie de política amigável que permitia os funcionários ficarem semanas fora do trabalho. Gente de todo o país trabalhava lá. Era ótimo poder fazer nossos flyers para os shows.

Sounds: Isso seria bem difícil de conseguir hoje, não?
Laura.
Sim. Ficávamos fora por dois meses e eles ficavam tranquilos quanto a isso. Trabalhamos sempre que voltamos para casa e acho que isso viabilizou o dinheiro para começar a Merge. Acho que teve  uma vez em que o pai do Mac nos emprestou 200 dólares para comprarmos K7s e imprimirmos as capas das fitinhas. Esses empréstimos eram baixos, mas conseguimos 400 dólares com a venda das fitas e devolvemos o dinheiro. Foi assim que tudo foi sendo feito. O fato de estarmos em uma cidade pequena também ajudou para que não fôssemos muito ambiciosos e não cobrássemos de nós mesmos um crescimento acelerado e repentino. A gente nem se importava em estourar, nem queria isso. Queríamos lançar uma fita K7 e um compacto e fazer isso mais vezes porque era divertido. Nos envolvemos com as bandas de que gostávamos e as ajudávamos com esses registros para que elas pudessem se divulgar em outros lugares. Na época era mais difícil sair em turnê porque as bandas não tinham um material físico que alguém pudesse comprar. Isso dificultava para conseguir shows em outras cidades.

Foto: Sounds Like Us

Sounds: No livro Our Noise… tem um trecho que fala que vocês eram bons em vender as coisas.
Laura:
Sim, senti isso naquela época. Conseguíamos vender qualquer coisa nas turnês.

Sounds: Qual era a ambição de vocês com a gravadora? Vocês se preocupavam com os lançamentos dos seus discos e dos discos dos amigos?
Laura: A Dischord Records e a Sub Pop eram exemplos pra gente. Elas foram bem-sucedidas e, pra nós, eram muito grandes. Hoje a Sub Pop é imensa. Olhamos pra elas e vimos que era possível, mas nunca me imaginei que “é isso que quero pra minha vida”. Era muito legal lançar os compactos e eu não imaginava que pudesse estar fazendo isso até hoje. Pensei que fôssemos fazer isso por um tempo e depois partir pra outra. Às vezes me pergunto o que estaria fazendo agora caso não tivéssemos criado a gravadora. Mas nem tenho ideia! Estudei Antropologia e me formei em Geologia.

Sounds: Uau! “Bem” próximo! (risos)
Laura:
Hahahaha. Eu meio que esperava trabalhar com arqueologia ou algo parecido. Agora é difícil pra mim pensar que eu iria preferir uma escavação porque a maior parte do trabalho do arqueólogo não é muito divertida hahaha.

Superchunk em 1995 / Foto: Claire Ashby

Sounds: Não tem um espírito de arquelogia em descobrir essas bandas?
Laura:
Sim! E a antropologia é também basicamente o estudo das pessoas e da cultura, o que também se relaciona com as bandas.

Sounds: O que você descobriu ao viver com diferentes pessoas e aspectos sociais por conta da Merge e do Superchunk? Isso te permitiu ir a vários lugares, não?
Laura:
Só isso já me modificou como pessoa. Poder viajar como viajamos é algo tão transformador que penso que todos deveriam fazê-lo. As viagens permitem que você perceba que as pessoas são pessoas, não importa o lugar onde você esteja. Muitos sequer viajaram para fora dos EUA porque o país já é muito grande, e muitas pessoas não têm dinheiro ou curiosidade para sair daqui, então elas têm essas ideias pré-concebidas de outros povos só porque falam um idioma diferente ou que não é compreendido. Viajar foi muito importante para minha evolução como ser humano, só pelo fato de conhecer outras pessoas, outras culturas. Esperem, o que vocês tinham perguntado mesmo? (risos)

À esquerda, Superchunk na Europa, em 1992 em fotos de David Doernberg no livro Our Noise: The Story of Merge Records / Foto: Sounds Like Us

Sounds: (risos) O que estas experiências lhe ensinaram sobre você mesma e outros povos?
Laura:
Quando você forma uma banda, você não percebe que é como se estivesse casando com ela. Eu convivi com aqueles caras [Mac, Jim e Jon] mais do que com qualquer pessoa na minha vida. Mais do que com meus pais e irmãos, sabe? Passei mais tempo em uma van com esses três caras do que com qualquer pessoa. E pudemos nos conhecer muito bem, além de testar nossos limites. Reconhecemos as forças e as fraquezas de cada um e rapidamente percebi que precisava tomar conta dos negócios. Eles não iam se lembrar de que seriam pagos ao fim da noite, então me incumbi de fazer isso. Acabei percebendo que era boa nisso e fui melhorando com a prática. Fiz o mesmo na Merge. Agora temos ajuda na contabilidade, o que é incrível, mas nos primeiros dez anos era só eu. Foi algo que me permitiu descobrir meus pontos fortes.

Sounds: Vocês não usavam contratos com as bandas, né? Precisaram envolver advogados em alguma ocasião?
Laura:
Talvez com o Trail of Dead.

Sounds: O que aconteceu com o Polvo e a ida para a Touch and Go [a banda pertencia ao catálogo da Merge e era distribuída pela gravadora parceira, de Chicago. Mais tarde, Laura e Mac souberam, pela Touch and Go, que a banda estava querendo fazer negócios diretamente com a distribuidora]?
Laura:
Foi algo muito decepcionante. E entendo por que eles fizeram isso. Em 1992, Corey Rusk, da Touch and Go, nos procurou e disse “gosto do que vocês estão fazendo com os discos 7 polegadas. O que acham de começar a fazer discos completos? Posso pagar pela fabricação deles e cuidar da distribuição para vocês”. Aquele foi um grande passo em permitir que pudéssemos crescer – devemos muito a Corey. Mas naquela época o Superchunk era a maior banda da Merge e, como banda, ainda estávamos atrelados à Matador. Ainda devíamos um disco à Matador, mas tínhamos os direitos de todos os nossos singles. As músicas que estavam nos discos ainda eram nossas.

Polvo / Foto: Ashley Worley

Sounds: Foi o caso do Tossing Seeds [coletânea de singles do Superchunk]?
Laura:
Sim, foi a primeira coisa que lançamos pela Touch and Go, e o Polvo era nossa próxima grande banda. Acho que o Polvo se sentiu como se fosse menos importante que o Superchunk, já que estávamos cuidando da gravadora, e imagino que eles tenham se sentido como se não dedicássemos a atenção que eles mereciam. Além disso, a Touch and Go era uma gravadora maior, com equipe, e poderia trabalhar mais nos álbuns deles. Ficamos magoados, claro, mas fez sentido eles fazerem aquilo. Sem contar que eles não tinham obrigações conosco.

Sounds: Vocês não usavam contratos, então?
Laura:
Não. Não me lembro exatamente de quando começamos a usá-los. A certa altura percebemos que tínhamos que ter um contrato porque quando você conversa com uma banda sobre o tipo de trabalho que será feito, você nem entra nos pequenos detalhes. Mais tarde, especialmente se a banda se torna bem-sucedida e entra mais dinheiro, os integrantes se tornam mais ambiciosos e agressivos em relação às coisas. É também o momento em que você começa a vender os discos e uma outra gravadora vem para levar a banda. Foi por isso que precisamos dos contratos, para estabelecer pelo menos alguma obrigação. No começo não sentimos esta necessidade porque só estávamos investindo dinheiro na produção e venda dos discos. Mas quando começamos a ter mais custos, ou a ter gastos com marketing, havia o risco de perder dinheiro no primeiro álbum. Mas se numa situação dessas você tem a garantia de que vai haver um segundo disco, você está investindo no futuro. Mas se as bandas decidem sair repentinamente, você fica apenas com a dívida.

Neutral Milk Hotel em Ohio, 1996 / Foto: Matt Suggs / Reprodução: Our Noise: The Story of Merge Records

Sounds: Vocês têm na Merge nomes bastante cobiçados por outras gravadoras, como o Arcade Fire hoje ou o Neutral Milk Hotel ou o Mountain Goats em outros tempos. Como vocês se sentiram quando outros selos se aproximaram de bandas que vocês ajudaram a crescer, ou seja, que receberam investimento no comecinho, sendo incentivadas a gravar um disco? Sabemos bem que essa “caça” às gravadoras independentes aumentou após o estouro do Nevermind, do Nirvana.
Laura:
Sim, esta foi uma época em que sentimos que as grandes gravadoras estavam apenas esperando que nós e outras pequenas revelássemos algumas bandas para que elas então apostassem naqueles nomes. Foi meio que o que aconteceu com o Trail of Dead, com quem também não tínhamos um contrato.

Sounds: O que rolou?
Laura:
Estávamos planejando outro disco deles, conversando sobre isso quando de repente esta gravadora, cujo nome não consigo me lembrar, veio e ofereceu à banda um grande adiantamento de dinheiro. Então eles disseram “ok, vamos sair”. Acho que este foi meio que o ponto de alerta para a necessidade de contratos, pois tínhamos investido bastante dinheiro no disco que fizemos deles. De fato recuperamos este investimento porque o disco deu certo, mas trata-se também de um investimento emocional. Era muito bom perceber que eles estavam ficando cada vez maiores e nós estávamos ajudando. Também estávamos ensinando certas coisas sobre como ser uma banda, pois eles só apareciam nos shows na hora em que iam tocar. Quando o Superchunk saiu em turnê com eles, ficamos muito surpresos, tipo “o que vocês estão fazendo?” (risos) “Vocês vão fazer isto: vão chegar lá às 17h, vão descarregar os instrumentos, vão passar o som…”.

Foto: Sounds Like Us

Sounds: Você acha que a relação das bandas com as gravadoras mudou hoje, tornou-se mais comercial?
Laura:
As coisas estão definitivamente diferentes. No começo não precisávamos de contratos também porque as bandas não tinham outras gravadoras para ir. Sério mesmo. Em, 1989, 1992, até, a música que todos nós estávamos fazendo era tão fora do mainstream que não tinha chance de uma gravadora grande se interessar ou até mesmo considerar levar embora uma de nossas bandas. Então a gente nem se preocupava com isso, somando o fato de que entre as gravadoras independentes não tinha isso de “roubar” bandas uma das outras, pois tínhamos que trabalhar todos juntos. No começo foi esquisito dizer a uma banda que precisávamos de um contrato porque aquilo era muito comercial para uma relação de tanta camaradagem e confiança. Desde sempre buscamos trabalhar com bandas de que gostávamos não só das músicas, mas das pessoas. Eram bandas com que sentíamos ser possível ter um bom relacionamento.

Sounds: Isso é muito importante.
Laura:
Sim! Mas foi ficando cada vez mais difícil viver isso de verdade. Sinto que naquela época as pessoas estavam, mesmo em bandas, fazendo música por diversão. Não pensavam que teriam uma carreira, apenas faziam porque era divertido. Mesmo as turnês eram feitas por serem divertidas. Mas agora parece que todo mundo que monta uma banda acha que pode ganhar a vida com ela. E isso não é realista. Existem tantas bandas e nem todas terão sucesso, é uma em um milhão. Não importa quão bom você seja. Você pode ser a melhor banda de todos os tempos e as pessoas nem se importarem. A menos que as coisas simplesmente aconteçam e você capture a atenção da Internet (risos)

Sounds: Só que a internet esquece facilmente.
Laura:
Sim, exatamente. Hoje sinto que nosso relacionamento com nossas bandas é um pouco diferente do que costumava ser, mas tentamos, tanto quanto possível, ainda cultivar o fato de que é um relacionamento e dizemos às bandas: “nos preocupamos com você” e “nós amamos você”. Mas é um pouco difícil porque, conforme as bandas conseguem mais sucesso, mais você perde o contato com elas pessoalmente. Não é só uma pessoa daqui tentando falar ao mesmo tempo, às vezes você tem 16 pessoas tentando entender as necessidades da banda… Olá! [Mac acaba de chegar para a entrevista].

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Mac: Olá, como vocês estão? Que bom ver vocês!
Sounds: Olá! Tudo bem?
Laura:
…e aí as bandas crescem e contratam empresários, que ficam entre nós e a banda.

Sounds: Como um muro entre vocês.
Laura:
Isso mesmo! E muitas vezes eles contratam um empresário porque há coisas que eles não querem nos dizer (risos)

Sounds: Vocês acham que o fato de nos anos 90 e 2000 haver tantas bandas, selos, zines e sites independentes deu a essas bandas a sensação de que “oh, isso pode acontecer! Posso viver da minha música! Agora eu tenho todos os canais, posso ter sucesso, ter um selo”? Foi um cenário que deu a ideia de que cada banda poderia estourar?
Laura:
Acho que isso só aconteceu depois de 2000, quando as pessoas começaram a sentir que toda banda estranha podia fazer sucesso…

Sugar, uma das bandas do catálogo da Merge / Foto: Todd V. Wolfson

Sounds: Como no fenômeno Strokes?
Laura:
Aham (risos). Hoje, graças à internet, as pessoas têm acesso a tudo e não há mais “música underground”. Não faz sentido o underground se podemos encontrá-lo em qualquer lugar.

Sounds: Underground no sentido de ir a shows, consumir zines, conversar sobre as bandas…
Laura:
Sim, no sentido de existirem mais bandas desconhecidas e inacessíveis… E sabe, sou grata por poder ter hoje este acesso fácil a tantos tipos diferentes de música, é ótimo! E tem sido especialmente excelente para nós desde o início, mas nos últimos 5 ou 7 anos, à medida em que evoluiu o uso da Internet pelas pessoas, as vendas caíram… A internet é ótima para descobrir o que tá rolando, mas não é tão boa para vender música. No começo, a maneira como as pessoas estavam descobrindo música nos ajudou muito a sair do nosso pequeno gueto indie e entrar para as paradas da Billboard ou qualquer outro lugar que nunca pensamos que estaríamos. Mas agora o que está acontecendo é que a toda internet passou a adotar o streaming e você não ganha tanto dinheiro com o streaming de discos como ganhava com a venda deles. Então, acho que de uma maneira estranha, estamos voltando para 1992 ou 1995, quando tínhamos que repensar o que fazer.
Mac: O problema é que o trabalho não é nem um pouco menor, sabe?

Sounds: É ainda maior, né?
Mac:
É maior do que vocês imaginam. Em 1998 provavelmente tínhamos 6 pessoas trabalhando na Merge.
Laura: Incluindo nós dois! (risos)

Sala de empacotamento e distribuição da Merge Records / Foto: Sounds Like Us

Mac: Hoje somos em 16 pessoas, então é uma situação estranha. É mais trabalho a fazer, mas você está vendendo muito menos discos. Somos gratos que há um número suficiente de pessoas que ainda querem comprar LPs e alguns CDs, mas há ainda mais pessoas que simplesmente esperam conseguir as coisas de graça. E é muito difícil mudar esta expectativa porque há música gratuita disponível. As pessoas que fundaram empresas como o Spotify dizem que “as pessoas não querem ouvir anúncios, então elas vão começar a pagar pelos serviços premium [nestes não há publicidade para o ouvinte]. Uma vez que todo mundo aderir aos serviços premium, as bandas receberão mais dinheiro”. Mas eu tenho dois pontos: (1) Eu não sei se as pessoas estão contratando a assinatura premium e (2) Mesmo que contratem, ninguém está sendo pago como era na época em que os fãs compravam CDs ou discos ou até mesmo faixas no iTunes. No modelo original do iTunes, em que os discos custavam US$ 9,99, receber 99 centavos por cada música era algo muito bom!
Laura: Foi algo ótimo.
Mac: É um bom modelo para artistas e gravadoras. Mas aí tudo se transformou em streaming. Felizmente, as pessoas que apoiam a Merge e, consequentemente, nossos artistas, não queriam uma cópia pirata, mas sim o produto original. Infelizmente hoje as pessoas podem ter os originais de graça porque com o streaming ninguém se sente ouvindo um bootleg, pois não é ilegal. As pessoas veem o nome da Merge no arquivo e se sentem como se estivessem apoiando o produto original, só que ali está disponível gratuitamente e a coisa mais difícil é competir com isso. Com a exceção de nossos discos mais populares, como Arcade Fire ou Spoon, nunca nos sentimos muito prejudicados pelos sites de torrent. Era algo que de fato tirava as vendas dos discos mais famosos, pois o público mainstream trocava a venda pelo pirata, mas no caso dos outros álbuns, o maior prejuízo vem do streaming. É complicado.

Like It or Not, do Wwax, oitavo lançamento da Merge / Foto: u/thereia / Reprodução: Reddit

Sounds: Vocês começaram lançando os 7 polegadas por diversão, e agora imaginamos que vocês tenham que batalhar para vender cada LP cheio que lançam, uma vez que as pessoas hoje não compram vinil como naquela época. O que faz com que vocês ainda acreditem neste modelo de gravadora, de descobrir bandas, de investir nas pessoas que fazem parte delas porque vocês acreditam nos integrantes? Hoje em dia vocês sequer têm a garantia de que as pessoas vão comprar a música porque elas podem contar com o streaming. O que faz com que vocês persistam com a Merge?
Laura:
É exatamente como vocês disseram! Fazemos isso pelas pessoas envolvidas. Continuamos porque adoramos trabalhar com as bandas que admiramos. Mesmo que não possamos conhecer as pessoas como fazíamos antes, ainda gostamos muito de poder disponibilizar a música delas para o mundo e estar associados a esta produção de que tanto gostamos. Junto com isso vem o fato de trabalharmos com as pessoas daqui do escritório, conhecer outras ao redor do mundo… tem tanta gente legal que ama muito a música. Sabe, é pelo fato de podermos encontrar pessoas como vocês!
Mac: Persistimos pelas mesma razão que vocês dois escrevem sobre música. É uma coisa de fã, e ainda há gente nos apoiando e pessoas comprando os discos. As pessoas realmente compram vinil, mas é o produto mais caro e trabalhoso de produzir… CDs são muito mais fáceis! Então é legal que as pessoas gostem tanto de LPs e continuem comprando. Mas é bem difícil fazer jus à demanda. Se os CDs voltassem, seria o melhor pra todo mundo.
Laura: Eles ocupam menos espaço, soam bem e são fáceis de fabricar (risos).

Foto: Sounds Like Us

Sounds: Mas são muito pequenos!
Laura:
Eles não vão empenar se você deixá-los no carro (risos).

Sounds: Isso de fato é uma vantagem! (risos) Vocês, como uma gravadora, ainda têm aquele sentimento da juventude de “você precisa ouvir isso aqui!”? É um sentimento tão bom, poder descobrir bandas e compartilhar com as pessoas.
Mac:
Sim, acho que ainda me sinto assim tanto em relação a novas bandas quanto com os discos novos das bandas com que já trabalhamos. É muito empolgante. Se você sabe que o Eric Bachmann (Crooked Fingers / Archers of Loaf) está trabalhando em um álbum solo, ouvir as músicas novas pela primeira vez é sempre algo muito fresco. Também sinto isso ao descobrir discos antigos. Sempre foi ótimo comprar discos quando estive no Brasil! [Mac tocou solo em São Paulo em 2015 e veio para diversas cidades brasileiras com o Superchunk em 2011 e 1998].

Sounds: Como foram essas compras?
Mac:
Da última vez que estive em São Paulo, quando vi vocês dois, eu tinha literalmente uma hora para comprar discos. Peguei um táxi e demorei uns 15 minutos para encontrar a loja, pois todas elas eram no último andar…

Foto: Sounds Like Us

Sounds: Era na Galeria Nova Barão, né?
Mac:
Todas as lojas ficavam no andar de cima. Eu olhava ao redor e via salões de cabeleireiro, então me perguntava “onde estão as lojas de discos?”. Quando as encontrei, só me sobrou uma hora e ainda tinham umas 20 lojas pra ir. Fui nas que foram recomendadas. Peguei muita coisa legal.
Laura: Engraçado, o que percebo é que muitos dos jovens brasileiros reagem à música tradicional brasileira com um “Nhaaaa”. Meio que “por que você quer ouvir música de gente velha?” (risos). Mas quando vamos ao Brasil isso é a coisa mais empolgante pra se procurar. É tão diferente da música daqui!
Mac: É difícil encontrar os discos de Cartola! Você pode encontrar os CDs ou pedir pela internet, mas encontrar LPs de samba ali é bem difícil. Comprei alguns Martinho da Vila, Paulinho da Viola e também um disco do Edu Lobo junto com a Elis Regina.

Foto: Sounds Like Us

Sounds: E mudando de assunto, tem uma parte muito legal do livro Our Noise: The Story of Merge Records em que está escrito “Merge Records, when the good guys win” [Merge Records, onde os mocinhos saem vitoriosos]. Vocês concordam com isso? Vocês sentem isso, “estamos fazendo a coisa certa, nosso negócio é sustentável”…
Mac:
Nós torcemos para que seja sustentável, mas não dá pra prever o que vai acontecer.
Laura: E tentamos ser os “mocinhos”! (risos) Sinto que somos do bem. Sempre fizemos as coisas visando ao interesse de casa banda, e acho que isso é o mais importante de tudo.

Sounds: Isso é algo raro, não?
Mac:
Acho que é raro na indústria da música em geral, mas no nosso mundo, quando começamos, muitas gravadoras eram assim. Touch and Go, Dischord… acho que essa era a abordagem padrão nos anos 80.
Laura: É engraçado o fato de ser uma gravadora de punk rock com uma ideologia que é quase hippie. Essa história de “estamos juntos”, “seremos honestos uns com os outros”.

Fucked Up, banda canadense de hardcore alternativo que recentemente migrou para a
Merge / Foto: Adam Goldberg

Sounds: Taí uma boa definição (risos) Hoje em dia vocês consideram que a Merge vende bem? Quais são as bandas que vendem mais?
Mac:
Até mesmo nossos discos mais vendidos não têm o mesmo resultado que tinham dois anos atrás [em 2013]. Em 2014 e neste ano [realizamos a entrevista em 2015], quem mais venderam foram Bob Mould and The Mountain Goats. Em 2014, além dos lançamentos normais tivemos vários relançamentos por conta do aniversário de 25 anos da Merge. Foi um ano bastante cheio, mas é difícil imaginar algum álbum que venda tanto quanto o Funeral, do Arcade Fire, ou o Ga Ga Ga Ga Ga, do Spoon.

Sounds: Fica caro relançar um disco?
Mac:
Depende de quão elaborados são os encartes. Fabricar vinil já é uma coisa cara, mas alguns dos encartes são mais complicados que outros. Um disco duplo, por exemplo, é bem caro de se produzir, mas acredito que o encarte é um dos motivos pelos quais as pessoas continuam comprando LPs. Algo bonito e palpável, que faz valer o investimento até mesmo para quem escuta música por streaming.

Superchunk, Geek e Seaweed na turnê Wet Behind the Ears, em 1990 / Foto: Jenny Toomey / Reprodução: Our Noise: The Story of Merge Records

Sounds: Como vocês definem os gêneros da Merge? Vocês começaram lançando discos do East River Pipe e do Seaweed, que é uma banda de que gostamos muito (leia nossa entrevista com o Aaron Stauffer aqui). Este começo era relacionado ao college sound e isso pareceu mudar para um som mais art rock com o Neutral Milk Hotel e o Magnetic Fields. Vocês foram vendo essas diferenças de sonoridade ao longo dos anos? Tinha uma busca ativa, no sentido de “agora vamos apostar nessas determinadas bandas porque estamos nos identificando com o som”?
Laura:
Sinto que nosso som sempre passou por muitos gêneros. Nunca houve uma sonoridade única em nosso catálogo, nem mesmo se você fizer um recorte por período. Você não consegue colocar todas as bandas no mesmo balde, sabe? Pra mim é uma maneira natural de dirigir a gravadora porque é um reflexo do nosso gosto musical. Acho que quem só ouve um tipo de música são pessoas que têm apenas 13 anos… (risos) Ou é algo do tipo “eu curto ska, é disso que eu gosto, foda-se!” (risos).

Mac: Ou “eu só escuto metal” (risos). Às vezes tenho inveja de amigos e pessoas que têm um selo só de dance music ou algo assim. Porque neste caso você tem um público que vem até você, que sabe exatamente o que procura. Além disso, eles lançam só discos de capas simples, não precisam fazer a arte do álbum ou algo do tipo (risos). Só precisam gravar e lançar, entendem o que eu quero dizer? Por exemplo, se você tentar olhar uma seção de dance music em uma loja, você fica pensando “como alguém sabe o que são esses discos?”. É como um selo com um símbolo estranho. E eles realmente sabem os números da matriz, é assim que sabem qual é o lançamento, o que é louco. Se você é uma gravadora especializada em uma coisa, de certa forma isso é bom porque as pessoas vêm até você por esta determinada coisa e eles não precisam se perguntar: “Hum, eu não sei se o The Clientele parece Polvo. Gosto de Polvo, mas isso está na mesma gravadora, então acho que eles provavelmente parecem Polvo”. Na verdade isso nunca foi uma opção para nós.

Sounds: Hoje cedo estávamos conversando sobre essas bandas que tinham um efeito de nos apresentar o mundo…
Laura:
Como se elas abrissem as portas?

Sounds: Isso, exatamente! E é tão bom, porque são bandas que não apenas abriram as portas para um tipo de música e para muitas outras bandas, mas era como se determinada banda fosse a sua banda. Temos esse sentimento com Superchunk. É tão bonito que vocês ainda conseguem manter a jovialidade dos primeiros anos! Há muita espontaneidade e queríamos saber se vocês, olhando para trás e pensando em escrever músicas agora, pensam “preciso ter essa espontaneidade o tempo todo”, ou se é simplesmente “não, apenas deixe rolar”.
Mac:
Acho que se você se esforça demais para fazer um certo tipo de coisa, ao ouvir isso vai ficar nítido, entende o que quero dizer? Acho que, como você precisa trabalhar para escrever músicas – não que não precise trabalhar nelas -, se você se força demais para fazer algo específico, isso soará forçado.
Laura: Mas também, à medida que você envelhece e quanto mais você faz música, a maneira como você escreve suas músicas acaba evoluindo. Isso acontece. Quando fizemos o Majesty Shredding (2010), realmente pareceu um retorno a uma era anterior do Superchunk e foi muito divertido! Eu gostei bastante.

Foto: Sounds Like Us

Sounds: Hoje em dia vocês têm muitos compromissos, suas famílias, e todas essas responsabilidades geralmente “não combinam” com rock e música criativa. Vocês nos mostram que é possível manter tudo isso.
Mac:
Acho que há maneiras de fazer isso acontecer… a música acaba entrando nos intervalos dessas responsabilidades da vida adulta…
Laura: E você só tem tempo pra isso se for espontâneo (risos)…
Mac: Sim! É assim, “não posso passar o dia todo ensaiando e fazendo essas coisas” (risos).