O lado lento (e igualmente brutal) do Napalm Death

In Bandas
Vinicius Castro

Por merecimento e atuação, o Napalm Death é um dos nomes que assinam a criação e a nutrição do grindcore. Explosivo, desafiador, barulhento, apaixonante e musicalmente violento. O grind é a convergência de tudo isso. É também o ato surgido para derrubar padrões, romper com a velocidade da música e gritar, em rugidos raivosos, os posicionamentos semeados pelo punk.

Antes de seguirmos por essas linhas, vale contextualizar o papel da velocidade na música. Voltemos então algumas décadas. No final dos anos 70, início de 80, o Bad Brains mudou a forma como a velocidade era exercida até então. Romperam com o que parecia intransponível e passaram ser considerados uma das bandas mais rápidas do mundo. Pouco depois, em 1983, com Kill Em’ All, o Metallica foi outro nome que acelerou os moldes dentro do metal. Hoje pode até parecer comum, mas em 1981 aquelas músicas eram o auge da rapidez.

Em 1986 foi a vez do Slayer deixar todo mundo pra trás com Reign in Blood, um disco, ou melhor, um bloco comprimido de agressividade e velocidade distribuídas em pouco menos de 30 minutos de duração. E não podemos esquecer do Sarcófago, que no ano seguinte lançou INRI, disco que inspirou boa parte da cena de death e black metal europeia e que por aqui popularizou a famosa “batera metranca”, como eles chamavam. Por aí já pra ter uma ideia do quão rápida eram aquelas músicas para aquela meia década. O Sarcófago sempre deixou evidente suas intenções quando repetia, aos quatro ventos, que queria ser a banda mais brutal, rápida e odiada (leia aqui). De certa forma eles conseguiram, mas aí já é uma outra história.

Lee Dorrian, Mick Harris, Shane Embury e Bill Steer. Foto: Divulgação

Voltando ao Napalm Death, foi em 1988, com o lançamento de Scum, que os ingleses explodiram os limites. Questionamos o Shane Embury (baixo) sobre isso em nossa entrevista, e ele nos contou que naquela época haviam “algumas bandas no underground mundial que já estavam ampliando os limites da velocidade na música extrema, e o Napalm Death simplesmente foi ficando mais rápido em parte por causa do Mick Harris (bateria)”. Ele ainda completa fazendo uso do tão famoso humor inglês: “Alguns amigos meus estavam felizes com o Metallica. Eu sempre quis ser mais rápido, por isso era uma coisa que parecia ser natural para nós”.

Jesse Pintado, Danny Herrera, Shane Embury, Barney e Mitch Harris. Foto: Divulgação

Em uma entrevista do ano passado, Mark “Barney” Greenway (vocal) disse que o Napalm Death é uma banda contraditória por produzir uma música extremamente violenta sob uma ética pacifista. Isso é bom, sendo a contradição algo inerente ao ser humano.

Mesmo trafegando em violenta velocidade, o Napalm Death é também uma banda que não abreviou suas ambições criativas e experimentou caminhos por trilhas mais, digamos, lentas, mas igualmente caóticas.

Foi pensando nisso que resolvemos trazer esse universo influenciado pela música industrial, o noise, pós punk e o movimento da no wave.

Mitch, Barney, Danny e Shane. Foto: Cinty Frey

Em 2014 eles fizeram um show especial no Roadburn com um set dedicado a algumas dessas músicas mais lentas. Sobre estas composições mais dark, Shane disse que são como um “reflexo da realidade do início do Napalm Death, que também traz os sons mais industriais vindos do Swans ou do Missing Foundation”. Entre outras, essas referências aparecem em quase todos os discos, distribuídas em músicas que, embora mais vagarosas, também nos tiram o fôlego, desafiam e provocam, como a arte sempre há de fazer. Vamos a elas.

“What Man Can Do”
HATRED SURGE
(1985)

Antes do grindcore, o Napalm Death era de sonoridade punk. Isso condiz com a primeira aparição dos ingleses em LP, com a faixa “The Crucifixion of Possessions”, na coletânea Bullshit Detector Vol. 3 (ouça aqui), lançada em 1985 pela gravadora do Crass.

No mesmo ano eles lançaram a demo Hatred Surge. Nela, “Instinct Of Survival” já era o prenúncio do grind que brotaria em Scum, primeiro disco oficial da banda. Mas é a “What Man Can Do” que sustenta algumas características que servem de norte para o nosso recorte. É o lado arrastado e hipnótico do Napalm Death. Ainda que ela seja um tanto enérgica e calcada no punk, Justin Broadrick (guitarra), Nick Bullen (vocais / baixo) e Mick Harris (bateria) inseriram aqui altas doses do pós punk de nomes como Killing Joke e Joy Division.

“Multinational Corporation”
THE PEEL SESSIONS
(1989)

A primeira vez que ouvimos “Multinational Corporations” foi também quando descobrimos o Napalm Death em uma fita k7 com a gravação do Peel Sessions, de 1989. Vale lembrar que aqui a formação já era outra, com Bill Steer (guitarra), Shane Embury (baixo), Mitch Harris (bateria) e Lee Dorrian (vocal).

“Multinational Corporation” transcendeu nosso entendimento e explodiu limites. Era novo, pesado, barulhento, fora do nosso tempo e perspectiva, e extremamente cativante. Era o Napalm Death dizendo que poderia ir muito além da velocidade e ainda assim soar corrosivo.

“Evolved As One” / “The Curse”
FROM ENSLAVEMENT TO OBLITERATION
(1989)

Aos gritos de “weak minds… weak minds”, o Napalm Death congelou nossas reações. Sabe aquela coisa de parar tudo o que você está fazendo e olhar fixamente para o aparelho de som como se ele pudesse lhe explicar o que está acontecendo ali? Foi exatamente isso o que aconteceu já nas primeiras batidas da música que abre From Enslavement To Obliteration.

Entre batidas espaçadas e a narrativa de Lee Dorrian, “Evolved As One” era algo além do que a gente pudesse esperar do Napalm Death pós Scum.

Já “The Curse”, responsável pelo desfecho do disco, funciona como uma música irmã de “Evolved As One”. Carrega a mesma perspectiva árida em um ato instrumental calcado no baixo distorcido e característico de Shane que bate, até hoje, como um maquinário industrial, direto no peito.

“Contemptous”
UTOPIA BANISHED
(1992)

A dinâmica cravada em “Contemptous” é muito próxima do que o ex-Napalm Death Justin Brodrick faz no Godflesh.

“Contemptous”, faixa que encerra Utopia Banished, disco de estreia do baterista Danny Herrera, é industrial ruidoso. Pesada, ela equilibra bem um certo primitivismo com um fundo de melodia nos riffs que, discretamente, quebram a frieza robótica transmitida em primeiro plano.

“Self Bretrayal”
GREED KILLING
(1995)

A fenda que há entre Fear, Emptiness, Dipair e Diatribes é um espaço fértil para as dissonâncias e experimentos que a banda viria a ressaltar em suas composições.

Em entrevista, Shane nos contou que nos discos da década de 90, nomes como “Helmet e Sonic Youth se tornaram muito interessantes” e o Napalm Death vivia uma fase guiada por uma sonoridade mais experimental.

Assumiram os riscos e a partir disso construíram momentos singulares na discografia da banda. Greed Killing, EP que traz a faixa “Self Betrayal”, é um deles.

“Cold Forgiveness”
DIATRIBES
(1996)

Quando foi lançado, Diatribes foi um disco que causou controvérsias não só entre os fãs. O próprio Barney não demonstrou muito gosto pelo álbum e já na fase de ensaios e composição, não estava muito próximo à banda. Ainda assim, Shane conta que “Barney não gostou muito das músicas, mas que, em retrospectiva, suas opinões mudaram”.

Mesmo com momentos descolados da essência da banda, como em “Just Rewards” e “Take the Strain”, e uma produção mais limpa, Diatribes não é um disco ruim. É um registro que dividiu opiniões, mas que também alcança alguns bons momentos. “Cold Forgiveness” é um deles.

“Inside the Thorn Apart” / “Lifeless Alarm”
INSIDE THE THORN APART
(1997)

Desde a gravação de Fear, Emptiness, Dispair, o clima dentro da banda não vinha muito bem e o título Inside the Torn Apart é uma referência direta a isso.

Na época de composição, Barney tinha deixado o Napalm Death para se juntar ao Extreme Noise Terror. Por sua vez, o saudoso Phil Vane, vocalista do Extreme Noise Terror, foi convocado pelo Napalm Death para substituir Barney. Os caras eram amigos de longa data, então tudo aquilo parecia realmente fazer sentido. Nem tanto. Os testes com Phil Vane não deram muito certo e, depois de um tempo, Shane ligou para Barney e fez o convite para que ele voltasse para a banda. Barney aceitou e dessa forma concluíram as gravações de Inside the Torn Apart.

Entre as músicas mais lentas, tanto “Lifeless Alarm” como a faixa-título são cativantes, mas a gente confessa ter uma preferência pelo riff tenso e melódico de “Inside the Torn Apart”.

“Morale”
THE CODE IS RED… LONG LIVE THE CODE
(2005)

“Morale” é dona de riffs dissonantes combinados ao vocal limpo e fantasmagórico de Barney. Sobre esse clima pesado, Shane chegou a dizer que as gravações de The Code ir Red… Long Live the Code ocorreram durante o mês de setembro, que é uma época “sombria como o inferno, no Reino Unido”. Além disso, o clima dentro da banda também não tinha evoluído para algo melhor, com Shane chegando a dizer que sentia como se a banda pudesse acabar a qualquer momento. “Era uma atmosfera estranha, mas criativa”, disse o baixista.

Em seus quase cinco minutos, “Morale” traduz toda essa tensão e obscuridade até se desmanchar quase que de modo épico sugerindo uma proximidade estética com “Weltschmerz”, música do disco seguinte, Smear Campaign.

“Weltschmerz” / “Smear Campaing”
SMEAR CAMPAING
(2006)

Para a Decibel, Shane contou que a intro “Weltschmerz”, que tem a participação de Anneke van Giersbergen (ex-Gathering) nos vocais, é uma homenagem ao To Mega Therion, do Celtic Frost. E ela realmente tem um toque do climão de “Innocence and Wrath” e do vocal operístico de “Necromantical Screams”, do clássico To Mega Therion.

Shane também disse que ficou tão satisfeito com os vocais que Barney colocou em “Weltschmerz” e na faixa-título que “poderia facilmente gravar um álbum inteiro desse tipo!”. Seria muito interessante.

“Circumspect”
UTILITARIAN
(2012)

A primeira linha de “Circumspect” diz: “We Simply Will Not Acknowledge What We Choose Willingly To Ignore” (Simplesmente não reconheceremos o que escolhemos ignorar voluntariamente). É o talento do Napalm Death em transmitir a sensação de um murro no estômago ou a tensão de um conflito eminente.

Utilitarian é onde o Napalm Death, com qualidade inquestionável, reúne suas influências aumentando ainda mais o contraste no resultado final de sus criações. Dos vocais quase góticos de “Fall on Their Swords” à fritação free jazz na participação de John Zorn, este é um registro seguro de suas experimentações e isso é refletido na faixa de abertura, “Circumspect”.

“Apex Predator – Easy Meat”
APEX PREDATOR – EASY MEAT
(2015)

Ameaçadora. Em um dos releases da banda, Barney declarou que essa música era como o Public Image Ltd vezes 10. E de fato, não só na faixa-título, mas em todo o disco (um dos nossos preferidos), ouvimos o resultado do equilíbrio de todas as influências da banda. Há muito de Siege, Discharge e Celtic Frost, como também há muito de Swans e Throbbing Gristle, por exemplo.

“Apex Predator – Easy Meat” consegue reescrever a intenção predatória de “Evolved As One”. Parece que nada vai sobreviver à massa sonora provida pela percussão pesada que explode logo depois da intro com os vocais de Barney. Toda o batuque que você ouve na música foi tocado por Shane, que usou umas latas de ferro e metal para compor o climão industrial que eles queriam.

Recentemente, em uma entrevista sobre o show que a banda fez no festival Roadburn, Barney comparou as músicas mais lentas do Napalm Death com coisas como My Blood Valentine e o universo da no wave. “Apex Predator – Easy Meat” não faz uma menção direta a isso, mas brinca com texturas raivosas que só o Napalm Death extrair.

“Oxygen Of Duplicity” / “Atheist Runt” / “Omnipresent Knife in Your Back”
CODED SMEARS AND MORE UNCOMMON SLURS
(2018)

Coded Smears and More Uncommon Slurs é uma coletânea com alguns covers, músicas inéditas e alguns lados B.

“Oxygen Of Duplicity” foi lançada em um dos splits da série Sugar Daddy Live, do Melvins. O disco tem 13 faixas que também foram lançadas separadamente, em 13 splits singles com bandas escolhidas pelo próprio Melvins. Além do Napalm, há gravações de nomes como U-Men, OFF!, Fantômas e Fucked Up.

“Atheist Runt” é uma música gravada durante as sessões de Smear Campaign e que conta com uma atuação vocal de Barney elogiada por Shane. Em seus pouco mais de seis minutos, “Atheist Runt” parece sonorizar um documentário cinzento sobre a revolução industrial inglesa.

Para encerrar nosso especial, “Omnipresent Knife in Your Back” mostra que a banda se arrisca, mesmo que timidamente, pelo universo shoegaze, o que favorece a fala de Barney que citamos há pouco.

“Omnipresent Knife in Your Back” foi gravada durante as sessões de Time Waits For No Slave e, em contraste a um disco tão veloz, é uma música que nos remete a uma certa melancolia no modo como é construída, enquanto Barney repete: “There’s an omnipresent knife in your back” (há uma faca onipresente nas suas costas). Verso, e música, fortes.

Ao Blabbermouth, Barney disse que a independência de espírito foi o que manteve a banda ativa por todos esses anos.

Uma fala que diz muito sobre uma banda que preserva sua independência criativa, uma disposição em expandir seus limites e assim manter sua integridade. Trata-se de ir além da música e da velocidade que se espera dela.

Danny Herrera, John Cooke, Shane Embury e Barney Greenway. Foto: Jelena Jakovljevic