Este foi um ano bem generoso de ótimos lançamentos. Gostamos de MUITOS discos, que só não aparecem nessa lista porque algum limite precisávamos ter. Nas escolhas tem bandas que já acompanhávamos, e aquelas que deram o ar da graça pela primeira vez, inclusive em nossos ouvidos. Alguns dos álbuns foram crescendo por conta da quantidade de repetições, outros, pelos shows que puderam ser assistidos, e alguns pela captura imediata. A quantidade enorme de produções disponíveis é uma coisa que a gente celebra muito, especialmente porque viemos de um contexto bem limitado, em que todo mundo acabava ouvindo as mesmas coisas diante das poucas opções. Mas um lado ruim dessa fartura é que a gente acaba não conseguindo construir comunidade em torno dos discos. Então, nossa lista é um convite para que vocês queiram ouvir alguns destes 34 álbuns e compartilhar com a gente o que acharam. O primeiro passo a gente deu aqui: um ouviu os discos favoritos do outro, e escreveu algumas impressões despretensiosas e espontâneas. Em tempo: um 2025 bem vivo e ruidoso pra vocês!
Dois discos em comum:
Godspeed You! Black Emperor – No Title as of 13 February 2024 28,340 Dead
A música instrumental tem essa coisa mágica de fazer ecoar discursos sem voz. Ouvindo o Godspeed nesse registro que é fruto da indignação, fica a certeza de que, no momento em que o povo palestino é dizimado sob o testemunho de bilhões de pessoas, pois há vídeos e mais vídeos disponíveis, esta é uma banda que não se silencia perante o horror. O título do disco é uma contagem das vidas assassinadas pelos ataques de Israel em Gaza de 7 de outubro de 2023 a 13 de fevereiro de 2024. A banda se pergunta que tipo de gesto ou de melodia faz sentido quando algo assim está acontecendo. Decide, então, tomar uma posição clara. Mais, assume a perplexidade e a converte em expressões belíssimas, algumas até esperançosas. Ouvir “Babys in a Thundercloud” e “Raindrops Cast in Lead” é como poder encostar na tristeza e voltar vivo dela. O mundo precisa ouvir esses apelos por socorro, e a arte sempre fala mais alto. Que proeza sem igual a desse disco, fazer com que a gente se comova profundamente, se solidarize, e ainda tenha sentimentos relacionados com futuro. (Amanda)
Shellac – To All Trains
Sair do zero foi difícil. Escreve. Apaga. Tenta. Escreve. Confirma: a gramática tá insuficiente pra suportar o que a gente buscava elaborar sobre o disco derradeiro do Shellac, For All Trains. A insuficiência se deve à triste partida de Steve Albini, uma das figuras mais importantes para a nossa música. A gente sem palavras e, de certa forma, sem todo ruído por onde ele costumava se comunicar, fosse via Shellac, Big Black, Rapeman, ou por meio de suas produções junto a diversas bandas que mudaram a nossa, a sua e a vida de muita gente.
Em uma equação rápida. PJ Harvey gravou Rid Of Me com Albini depois de ouvir o trabalho dele em Surfer Rosa, dos Pixies. Albini era “pronto para capturar o momento quando ele chegasse”, escreveu PJ e isso me marcou. Mais um aprendizado via Albini. Ainda sobre conexões, um tal de Kurt Cobain, encantado com o trabalho de Albini junto a PJ Harvey, convidou o produtor para trabalhar em In Utero, do Nirvana. E assim, a cadeia dos geniais registros foi sendo costurado tendo Albini como o ponto convergente dessa gente tão especial.
Demorei pra ouvir For All Trains. O disco foi lançado poucos dias depois do falecimento de Albini. Depois de um bom tempo, ao ouvir o álbum na íntegra, a escrita ainda me falta. Como disse, não saí do zero em discorrer sobre o disco. Portanto, vou parar por aqui e deixo com vocês as impressões sobre For All Trains. Ouçam alto. E que o barulho de Albini siga ressoando em nossas buscas, trajetos, e que a gente esteja pronto para capturar os momentos assim que eles se apresentarem. (Vinicius)
OS DISCOS MAIS LEGAIS DA AMANDA DESCRITOS PELO VINA:
Yard Act – Where’s My Utopia?
A banda que a Amanda pegou no colo, cuidou, alimentou e…“ESCUTA-ESSA-BANDA!!!” A minha impressão é a de que “We Make Hits”, uma das músicas, seria sucesso na pista do Atari Club caso tivesse sido lançada nos já distantes anos 2000. Acho interessante a forma como algumas bandas, o Yard Act como parte de tal recorte, reinterpretam a cartilha do Talking Heads, The Fall e, de leve, as angularidades do Gang of Four. Ouvindo Where’s my Utopia confirmo que o bom faro da Amanda em apontar algo que irá despontar segue afiado: “ESCUTA-ESSA-BANDA!!!”
Fred Thomas – Window in the Rhythm
Jeitão de domingo pré-almoço. A princípio o disco não tinha funcionado pra mim. Mas eu gosto dos domingos, então, ouvi outras vezes. Sobre o meu argumento inicial, te peço, desconsidere a ideia de o domingo carregar o fardo de anteceder as segundas. Pense pelo lado da tranquilidade de um dia à toa, em estar com quem você gosta, fazendo o que te faz bem, longe da afobação de um dia apressado. Feito isso, Window in the Rhythm (“Season of Carelssness” me pegou!) pode se tornar uma trilha linda para o que há de bom nos domingos a sua frente.
Mannequin Pussy – I Got Heaven
Foi com “Of Her” que eu entrei na energia do disco. E tive a nítida sensação de que a vocalista estava gritando aqui, ao meu lado. Ou melhor, a 5 cm da minha cara, e cada palavra fritou minha pele poucos segundos depois de berrada por ela. Ao vivo a banda deve ser intensa. Me deu essa impressão também. Lembro que a Amanda me mostrou um vídeo da banda tocando ao vivo no KEXP, se não me engano, e o barulho era bem bom. Esse ímpeto do ao vivo se confirma na audição do disco. Leia as letras. Fiz isso por aqui e foi um exercício definitivo pra entender I Got Heaven.
Friko – Where We’ve Been, Where We Go From Here
A escolha da primeira música de um álbum – pensando na ideia de um disco completo – pode elevar, comprometer ou mesmo confundir. No caso do Friko, a faixa de abertura confunde e eleva, no melhor dos sentidos, a ideia de pra onde o disco vai a partir de então. Isso porque “Where we’ve been” é potente e deixa uma pulga de: “pô, o que vai vir depois dessas leves menções a Arcade Fire e Radiohead?” E veio coisa boa! Where We’ve Been, Where We Go From Here é emocional, elaborado, de bom gosto, e, por agluma razão, me lembrou o MewithoutYou (banda subestimada, diga-se), principalmente em “Statues” e em “Chemical”, pra mim, o grande destaque do disco.
Been Stellar – Scream from New York, NY
Ben Stiller? Acendeu a luz de: “Gostei disso!” (parei de escrever, fiquei só ouvindo o disco). Encerrada a primeira audição, voltei. De fato, gostei! Não conhecia o Been Stellar (aqui, na primeira escrita, veio o ato falho: escrevi BEM Strellar, o que de certa forma, tem a ver com o som). Tem algo de Verve nas tramas do Been Stellar, mas do primeiro disco, o A Storm In Heaven. “Passing Judment”! Que música legal! Ela, assim como o disco em geral, soa bem linear e com frescor, o que dá bastante consistência ao álbum.
Idles – Tangk
O Idles soa perfeito em Crawler. Tangk é menos “pra dentro” do que o seu antecessor, e de onde minha preferência alcança. É menos expansivo do que Joy as an Act of Resistance. Na época em que foi lançado, gostei. Mas não tive uma relação imediata com o disco e, por conta disso, foi legal ele estar na lista da Amanda, porque me fez ouvir sob um outro viés. Gostei mais! Os experimentos em relação às texturas que o Idles vem elaborando disco a disco parecem ter encontrado um ponto interessante em Tangk, algo que teve início em Crawler. Porém, neste mais recente, com um tanto mais de cor.
Mount Eerie – Night Palace
Um disco de quase uma hora e meia de duração. É estranho. Músicas com beats eletrônicos, saturação, ruídos abrasivos e vocais sem grandes modulações. O início de “Myths Come True” me lembrou a voz de Neil Tennant, do Pet Shop Boys! (Pode isso, Arnaldo?). Pode, e é justamente esse conjunto de aparentes estranhezas que me fizeram gostar muito desse disco. O pouco que eu conheço do Microphones foi por meio da Amanda e eu nem imaginava que o Mount Eerie era uma outra face de Phil Elvrum, do Microphones. O que é bom, porque esse disco me jogou em um lugar de descoberta, do inédito, o que fez Night Palace ficar muito interessante. Preciso destacar “I Spoke With a Fish”. É uma das músicas mais bonitas que eu ouvi esse ano. Que disco, Amanda! Que disco!
Fucked Up – Someday
Meu contato sonoro com o Canadá sempre foi por meio do rock/metal (Rush, Voivod, Gorguts, Exciter…) ou pelas dezenas de vezes que a turma do Pica-Pau entoava “eeee…” nas cataratas do Niágara. O Fucked Up me foi apresentado pela Amanda e eu sempre gostei do lado menos, digamos, pesado da banda. Acho que eles funcionam bem nas melodias e em Someday me parece que isso se sobressai. Gostei do disco. Divertido e com participações especiais que deram um tempero legal para o som deles.
Johnny Foreigner – How to Be Hopeful
Conheci o Johnny Foreigner por meio de uma entrevista que a Amanda fez com eles (leia aqui). Desde então eu tenho um carinho especial pela sonoridade que flutua entre o rock alternativo e o punk, mas que consegue uma bela assinatura. Me chama atenção o comprometimento que a banda tem com a diversão sem perder sua legitimidade. Em How to Be Hopeful isso se mantém mediante a uma barulheira da boa! Essa banda é A CARA da Amanda… hahaha.
Stay Inside – Ferried Away
Inicialmente, ouvir Ferried Away foi uma viagem esquisita. Me pareceu ter algo no disco pronto para acontecer, mas que não acontecia. Em outro momento, o que parecia flat, acabava por “acontecer”. O que me chamou a atenção foi a forma do vocalista encaixar melodias que lembraram alguns momentos do Shudder to Think, talvez pela maneira como o vocalista prolonga os fonemas. Não tenho relação como o emo pós-2000. Tirando os maravilhosos Bleed American, do Jimmy Eat World, e Full Collapse, do Thursday, 98% do que eu conheço foi por meio da Amanda, que é uma das pessoas que mais se dedica ao assunto, e o Stay Inside me parece localizar suas referências nesse período. Por mais que eu sinta que dificilmente vou ouvir o disco novamente (foi mal, Stay!), ainda assim, Ferried Away foi uma experiência divertida.
Decurso Drama – Distopia Proposital
90 até a medula! Uma sonoridade muito bem-vinda, diga-se. Adorei os timbres e a captação dos vocais! O apontamento para as melodias do rock alternativo, algo presente nos discos anteriores, permanece intacto. O Decurso Drama é uma das prediletas da Amanda e, me parece que em Distopia Proposital, eles carregaram um pouco mais nas dissonâncias e na “sujeira” de nomes como TAD, Gruntruck e outros familiares, o que me agradou muito. Um belo disco!
American Culture – Hey Brother, It’s Been a While
Foi uma das coisas mais legais que a Amanda me apresentou durante nesse ano em conversas sobre a sonoridade da banda e de como eles se mantiveram juntos mesmo depois do vocalista ter desaparecido por um período e ter sido encontrado em situação de rua. Quando ela me apresentou o disco, lembro que a primeira faixa me lembrou Happy Mondays e Chapterhouse. É um disco bem legal de uma banda que eu gostei de conhecer!
Other Half – Dark Ageism
Uma das coisas legais dessa “brincadeira” de um escrever sobre os discos preferidos do outro é que talvez eu passasse batido em quase todos os discos que estão por aqui. E nessas eu deixaria de conhecer algumas coisas legais como o já citado Mount Eerie, Been Stellar e o Other Half. Dark Ageism tem uma energia semelhante ao Fucked Up, Johnny Foreigner e algumas coisas de post-hardcore, um pouco mais aparente em faixas como “Lowlifes & Lower”, que tem um jeitão de Drive Like Jehu; e em “Other Half Vs. The End of Everything”. Esse é pra ouvir em volume máximo!
Ekko Astral – Pink Balloons
Barulhinhos, microfonias, distorções nos vocais, timbres granulados… tá tudo aí. Pink Ballons começou a ficar legal pra mim da metade em diante. Gostei bastante de “buffaloed”, “devorah” e “i90”. Olha, deixar as músicas mais legais para o final foi uma decisão estética? Ou o Ekko Astral entendeu que elas seriam menos aderentes ao público? Não sei. Mas eu prefiro acreditar na primeira opção, porque as quatro faixas que encerram o disco são muito boas!
Drug Church – Prude
Me lembrou bastante a onda do Culture Abuse e o Fucked Up, que a Amanda adora e está nessa lista. Bom, a brincadeira aqui é: nada de pesquisa, apenas a impressão que o disco deixa em você. Ok, a impressão foi boa e, ainda que em um primeiro momento me pareceu que a coisa ia enveredar pra algo um tanto genérico, embora divertido. Mas acho que isso se deve à escolha da faixa de abertura. “Mad Care” não me parece a melhor opção porque tudo que vem depois é beeeeem mais legal.
Armlock – Seashell Angel Lucky Charm
O tempo fechou, começou uma garoa fina e esse disco tá como trilha sonora. O vocal “monotonal” funciona em um lugar que eu gosto muito na música: o não-clímax. É um dos discos que eu você sente que precisa ouvir mais. Não porque não gostou ou por se tratar de algo altamente complexo. Acho que a coisa é bem mais simples do que isso: é dar ouvidos atentamente a uma sensação de que “tem algo a mais aí” e, geralmente isso é um bom sinal.
OS DISCOS MAIS LEGAIS DO VINA DESCRITOS PELA AMANDA:
Primal Scream – Come Ahead
O Vina amou esse álbum já de saída, e é completamente compreensível. Pensem num disco que é um acontecimento imperdível, não porque todos estão falando dele, mas porque você vai se sentir incrivelmente convocado a estar ali. Tem o funk dos anos 70, um cadinho de psicodelia, o tecladinho triunfante da era disco, O DNA de Bobby Gillespie e da Creation Records na malemolência das batidas, os backing vocals redimensionando as letras urgentes de Bobby para alcançar a comunhão de quem precisa denunciar e resistir ao fascismo no mundo. “Melancholy Man”, um destaque pra mim, tem uma sofisticação familiar em seu arranjo nada excessivo, mas grandioso, herdeiro de quando Brian Eno e Bryan Ferry faziam a gente dançar enquanto chorava. Uma curiosidade: fiquei com a impressão de que o Primal Scream andou para que o Yard Act aprendesse a correr.
High Vis – Guided Tour
A impressão que tive ao ouvir o Guided Tour junto com o Vina é a de um paradoxal sopro de renovação estruturado na inquieta tradição oitentista de trazer outras gramáticas ao punk, como víamos nas bandas da new wave e as da Dischord Records. Fico imaginando o High Vis celebrando as ótimas heranças do passado, mas sem que elas pesem excessivamente numa balança pouco preocupada com dosagem e disposta a outras referências, como o dance eletrônico, na “Mind’s a Lie”, ou o metal – sei lá por que achei a “Mob DLA” meio Corrosion of Conformity, Fu Manchu e afins, mas curti muito. Esse disco é beeeem legal, e o Vina vem falando dessa banda tem tempo. Não parece à toa que eles estejam cada vez mais presentes nas recomendações do punk contemporâneo, fluído e raivoso como nossa época.
Julie Christmas – Ridiculous and Full of Blood
Que capa perturbadora, minha senhora. Assim como tudo que está embalado nela. O que não significa que não seja bastante convidativo e, uau, fascinante – como tudo que nos assombra. Julie Christmas, que o Vina tinha me mostrado na extinta banda Made Out of Babies, tem um timbre que muitas vezes me lembra a Bjork, mas com uma modulação que vai a outras direções, extremamente criativa e desconcertante. Fico pensando como será que ela compõe. Tô aqui destacando os vocais, mas o instrumental não fica atrás, vindo com a grife do Cult of Luna e do Ken Mode. “End of the World” é avassaladora. Sonoramente, acho que é um disco misto de sludge, noise rock e apocalipse metal (tô inventando essa tag porque me senti assim, numa trilha sonora extremamente coerente com o estado atual das coisas).
Oranssi Pazuzu – Muuntautuja
O vocal parece de black metal, o instrumental é impressionantemente diverso, por vezes meio cabeçudo, tipo Rush, ou num eletrônico com sintetizadores desconcertantes, ou ainda uma psicodelia pessimista conduzida pela guitarra, que foi como me senti com “Voitelu”, que tem ainda um pianinho fantasmagórico, mas que é uma belezinha. Fiquei com a impressão de que o Mike Patton teria adorado fazer uma música como a “Hautatuuli”. Enfim, o disco é muito único e admirável, e pra alguém leiga na banda como eu, pode ser levianamente apresentado como um “You Won’t Get What You Want”, do Daughters, sem dormir por 15 dias e com muitos (nussa, bota muitos mesmo) esteroides.
The body – The Crying Out of Things
Ainda na temática desespero, o the body serve pra dar e vender. Gosto da escalada de “Last Things”, que dobra a aposta numa tonalidade sombria que parece marcada por algumas notas limpas do que suponho ser um piano, cobertas por uma trompa meio kubrickiana – só que em vez de ela soar “redrum, redrum”, fica sombreando uns cânticos meio perturbadores. “Removal”, que vem na sequência, me pareceu um Nine Inch Nails turbinada do imaginário dos filmes do David Fincher, em que a luz do dia parece esconder os perigos mais mundanos. Na “End of Line” eu acabei lembrando da belíssima intro de “All We Love We Leave Behind”, do querido Converginho. Ela fica sustentada na mesma caminha de repetição, mas com uns barulhinhos que, minha nossa, que aflição. “Nossa, esse disco dá uma paz” é o tipo de coisa que você nunca vai dizer do álbum do the body. Mas parece ser 10/10 dentro da proposta de atormentar com classe.
Gouge Away – Deep Sage
Adoro detalhes dentro de um gênero. No hardcore, então, aprecio mais ainda, porque é o tipo de som que costuma ser equivocadamente divulgado como uma espécie de padronagem simplista de tupá-tupá-tupá, vocal vigoroso, uma paradinha ali, uma volta mais propulsiva e o tupá-tupá-tupá vindo tudo de novo. Mas está longe de ser só isso e sinto que nós que estamos vivos em 2024 temos sorte de poder ver outros códigos sendo explorados, a exemplo de um vocal encaixado no contratempo, que é o que vemos Christina Michelle fazer já na abertura, em “Stuck in a Dream”, ou na dramaticidade angustiada do noise de “Newtau”, emendada pelo shoegaze de “Dallas”, sem que o nome “hardcore” seja deixado de lado. Aliás, o hardcore tá brilhando em vários exemplos da nossa lista.
Arooj Aftab – Night Reign
Não conhecia a Arooj Aftab, que parece ter uma voz bem poderosa e que cobre de doçura idiomas variados, como o urdu, língua oficial do Paquistão e de alguns estados da Índia, e o inglês. Suas músicas parecem um passeio por um jazz minimalista, naquela tradição de cordas, como a harpa, incorporadas a seções rítmicas bem pulsantes. Não é o tipo de som que costumo ouvir, mas achei bem legal saber que ela desfruta de bastante prestígio.
Sumac – The Healer
Quatro partes de uma meditação angustiada-angustiante sem qualquer amarra com fórmulas que demandem a entrada de um vocal aqui, ou uma quebra de dinâmica ali, que dirá algum tipo de estrutura previsível. Ou seja, um desafio para a economia da atenção. Da vez em que vimos o Sumac ao vivo, numa turnê com o Neurosis, o Sounds Like Us ficou dividido: o Vina ficou encantado, e eu bem tentei apreciar, mas tava com uma fome meio descomunal (será mesmo descomunal, Amanda?), na fila por pierogis. Então o Sumac ficou registrado pra mim como uma trilha bastante dramática da minha fome – na economia da minha atenção, a iguaria polonesa ganhou. Que o Aaron Turner me perdoe, que eu o respeito demais, mas eu não tive as enzimas necessárias pra processar os códigos sonoros do Sumac. Pra dar um pouco de dignidade a este texto tão injusto, digo que iniciei uma promissora relação com a “New Rites”.
The Cure – Songs of a Lost World
Que sorte a nossa de viver a longevidade do The Cure: há uma discografia suficientemente estabelecida e corajosa pra mergulharmos no passado, e uma produção contemporânea e inédita que premia, com as sensações de admiração e assombro, os ouvintes que estão conhecendo a banda pela primeira vez. O sucesso popular e de crítica geralmente instala dois senhores exigentes a serem atendidos, mas o mais divertido é ver que o Cure não parece muito preocupado em corresponder às demandas, inclusive das grandes gravadoras e de um tempo que mensura sucesso por curtidas e vídeos de rede social. Daí vem a admirável liberdade de começar um disco com “Alone”, longa, soturna, com introdução baseada em repetições que poderiam dispersar as pessoas mais afoitas. Fiquei ali, firme e forte, sem precisar de esforço, até porque gosto dum picles de melancolia: “curtida” no azedume, na desesperança e na ruminação pessimista de um mundo que parece difícil de ser resgatado. Mas ali pela sexta música acho que me dispersei, o que claramente deve dizer sobre mim, e não sobre o álbum. Talvez eu só precise escutá-lo em outros momentos.
Beth Gibbons – Lives Outgrown
Bethinha, como carinhosamente a chamamos aqui em casa, é uma artista favoritíssima do Vina. A expectativa por novos trabalhos dela tem sido felizmente recompensada, como vemos na nossa lista de 2019, com o belíssimo disco que ela fez com a Polish National Radio Symphony Orchestra. Pelo olhar (ouvidos) do Vina, eu sempre esperava algo de finíssima qualidade, numa sofisticação acessível que é característica dela. Mas não é que fiquei surpresa com este Lives Outgrown? Na minha ignorância tava imaginando minimalismo e bases eletrônicas pulsando uma melancolia irresistível, e a danada me vem com um folk bonito e esperançoso na “Floating on a Moment”; uma espécie de canto avant-pop tribal na excelente “Reaching Out”, que me fez pensar que lindo seria uma turnê do Young Fathers com ela; e um lamento meio sinfônico-medieval em “For Sale”. “Lost Changes” é tão triste quanto linda, enaltecendo uma voz que conduz tudo ao seu redor.
Black Curse – Burning in Celestial Poison
Pela minha visível limitação no black metal, sempre fico constrangida com as injustiças que devo cometer nos textos aqui. Mas a ideia da troca é justamente favorecer as impressões livres, então, bora deixar a censura de lado. Achei curioso que tem o vocal mais característico do gênero, mas também uns guturais de death metal. Tem solos de guitarra também, é isso, produção? Parecia que a primeira música ia acabar na viradinha da bateria ali pelos quase 4min40s, mas eis que ela ainda tem muito o que dizer, e chega a mais de 10 minutos, com mudanças significativas de dinâmica. Assim segue o disco, com cinco faixas em durações bem longas, menos típicas na música extrema, mas preservando a agressividade e velocidade características. Imagino que o Vina tenha pirado muito com essa proposta.
The Messthetics – The Messthetics and James Brandon Lewis
Que chique é este Fugazi para pós-jovens pré-apocalipse, com mais boletos e responsabilidades, mas, também, um gosto mais aberto para as belezas do jazz! Brincadeiras à parte, estamos ouvindo nada menos que a junção do Joe Lally e Brendan Canty (metade do nosso amado Fugazinho) com o Anthony Pirogi (o trio forma o Messthetics), em parceria com o saxofonista James Brandon Lewis (que gosto de acreditar que inventou a caixinha da JBL – é mentira, mas eu queria que fosse verdade). O resultado é refinado, mas preservando a espontaneidade/impulsividade de quem não se preocupa em deixar as arestas. Acho que gostei mais daquelas que têm algum pezinho no punk, de marcação no baixo, como “Emergence” e “The Time is the Place”.
Papangu – Lampião Rei
Eu ia escrever alguma coisa sobre um encontro do cangaço com o King Crimson, mas essa descrição já deve estar bem batida. Se servir pra situar sonoramente, é bem por aí. Mas o que mais senti ouvindo “Lampião Rei” é que o Papangu parece ter uma visão (no sentido de horizonte, aposta) muito bonita do que é o Brasil: um futuro mágico, alcançado pela revisitação de tradições justamente porque este é um país que teve sua originalidade e seu passado devastados pelo colonialismo. A gente se vestiu de outras linguagens e referências, muitas delas impostas, e é muito legal ver o que o Papangu fez, criativamente, com tudo isso.
Isobel Campbell – Bow to Love
Que baita verso é este “Quit stepping on my heart you son of a bitch”, já na abertura! Isobel é sutil e recobre seus versos de uma doçura que despista a língua ferina. Aos meus ouvidos leigos, porque nunca fui de acompanhar o trabalho dela ou do Belle & Sebastian, o álbum chegou manso, mas jamais inofensivo, com minimalismo acústico temperado com momentos de piano e cordas e algumas incidências eletrônicas. Fico aqui pensando que talvez a Phoebe Bridgers tenha bebido dessas influências isobelianas em seu belo canto macio das piores notícias, o que muito me agrada pensar. “Do or Die” é bem bonita, é a que mais gostei.
Uncle Acid and the Dead Beats – Nell’ ora blu
Que engraçado, pela capa eu tava achando que o Uncle Acid fosse meio que um Captain Beefheart encontrando o “El Topo”, do Alejandro Jodorowsky, e também as trilhas musicais italianas obscuras caçadas pelo Tarantino para seus filmes. Fui pesquisar e parece que eu dei uma viajada retumbante na maionese, com a origem inglesa da banda e suas raízes ligadas ao metal britânico fundante, nível Black Sabbath. Mas gente, ouvindo, meu imaginário teima em colocá-los em algum faroeste psicodélico, ou em algum preâmbulo daquela hora em que dá tudo errado nos filmes noir. Vale tentar descrever assim? Não estou conseguindo escrever nada edificante, vou parar por aqui pra não estragar a experiência de vocês (emoji derretendo, quero me esconder).
Spectral Voice – Sparagmos
Eu tinha achado a capa da Julinha Natal bem perturbadora, mas essa não fica atrás. Também tinha destacado a duração das músicas do Black Curse, e aqui é a mesma levada: faixas bem longas, trabalhadíssimas (é legal pensar a versatilidade da música pesada). Tem até um vocal curiosamente “limpo” em alguns momentos, carregado de uns efeitos de reverb que dão uma névoa pesada bem condizente com o tormento do instrumental. Parece doom metal de mãos dadas com o black metal – seria o loud quiet loud do metal extremo?