Um dia de céu cinza, uma garoa fina que cai um pouco desengonçada e questiona os 15 graus anunciados no jornal da manhã. Da caneca vem a fumaça do café com leite quente, preparado para aquecer os pulmões, pintando o quadro do dia, em um cenário iluminado pelo último disco de uma banda de nome tão infantil quanto determinado a mostrar sua arte ao mundo, despida e entregue de corpo e alma à música. A banda é o Pedro the Lion, e o disco é o Achiles Heel, lançado em 2004.
Há quem ache a música do Pedro the Lion triste, doída e, na boa? Talvez seja mesmo, mas isso vira um microcosmos dentro da esperança imbuída em cada acorde que, em perfeita comunhão, traz aquele sentimento bom do desconhecido que ainda está por vir.
A banda foi formada na chuvosa Seattle por David Bazan, vocalista, multiinstrumentista e daqueles tipos que em um bar senta numa daquelas mesas de canto, sozinho, preenchendo os espaços vazios de um pequeno bloco de anotações com fragmentos de letras que, tempos depois, virão a preencher o vácuo que possa existir em cada um que escutar seus discos. Bazan tem aquele poder de compor canções que fazem você viver várias vidas porque é da natureza delas se apresentarem dessa forma. Dependendo da compressão, elas não se misturam, mas contam histórias dentro de um sistema cheio de arestas que esbarram vez ou outra na melancolia, no amor, na religião, na falta dela, na plenitude ou na procura pelo rastro de onde ela já tenha feito alguma morada.
Todo esse talento para criar canções é salteado por um equilíbrio em fazer com que elas soem facilmente pop, mas com aquela distância segura do simplório e do banal. Talvez como os Beatles fizeram em Rubber Soul – disco que ouvimos recentemente e ainda soa com algum frescor na memória para tal referência.
O Pedro the Lion surgiu em 95, durou até 2006 e foi chamado até de slowcore (wtf?). Muitos chamam de christian rock, mas calma, a gente sabe que é quase inevitável vir a imagem do Stryper na cabeça, mas não é nada disso. Bazan é (ou era) cristão praticante, daí vem a alcunha, e ainda assim parece usar seus pecados para direcionar sua criatividade.
Com quatro discos oficiais e cinco EPs, nesse tempo de vida criaram grandes obras que circularam e ainda circulam no submundo indie, aqui e no mundo.
Depois do EP Whole, o primeiro disco da banda, It’s Hard To Find A Friend, foi lançado e logo trouxe um certo aconchego aos ouvidos. Prova disso é que as 500 primeiras cópias se esgotaram em um só dia, quando o Pedro the Lion participou do festival Cornerstone. É o disco preferido da Amanda, da imprensa e, com certeza, do público que estava presente no festival. Solto, hipnótico, de poesias reais e com aquele toque que mistura a simplicidade de Brian Wilson com a despretensão de Daniel Johnston, It´s Hard To Find A Friend tem belas músicas, mas “Bad Diary Days” é mais pesada e direta. Pair of ticket stubs in the desk / A movie i’ve never seen / I probably shouldn’t ask / It sounds so accusing / She must have forgot to mention / Girl’s night out… She swore that she could explain / She swore that it would not happen again / She swore that she could explain / We both knew her words were in vain.
Já em 99 foi lançado o EP, ou mini-álbum, The Only Reason I Feel Secure (99), que traz a excelente faixa “I Am Always the One Who Calls”, que abre o disco e salta aos olhos e ouvidos. Na grande verdade, o disco inteiro é uma refinada amostra do direcionamento que viria a ser reforçado no segundo álbum.
Winners Never Quit é o segundo disco. Referências a Deus, moralidade e auto-negação seguem como temas espalhados por todo registro. Lançado em 2000, é um disco tão sensível quanto o nome permite ser julgado. “Slow and Steady Wins the Race” é uma das mais lindas músicas que Bazan já compôs. Simples, ele e o violão contando sobre uma xícara de chá e bolo feitos pela avó em tom de saudade e a espera de reencontrá-la e ser recebido por anjos no céu. “Simple Economics” dá uma acelerada no andamento que depois reduz bem com “To Protect the Family Name” e ganha uma dinâmica intensa com o riff extremamente melódico e forte de “A Mind of Her Own” que, junto com a primeira, são as mais legais do disco.
E chegamos a 2002 e ao melhor e mais acessível entre os discos lançados até então: Control. Aqui temos um recorte que deixa um pouco de lado o violão e a aura intimista dos lançamentos anteriores.
Mais que algo palatável, Control é um disco de guitarras claustrofóbicas que ganha algumas vidas e sobe de level ao revelar-se um disco conceitual. No release oficial ele é definido como um estudo mórbido entre a infidelidade e a cultura corporativa. Em um recorte mais amplo sobre o seu conteúdo, Control é um conto sobre um homem de negócios que está tendo um caso e com o perdão do spoiler, no final, ele é morto pela esposa.
O disco se mostra além do início cínico da pré-nupcial “Options” que abre com versos como I could never divorce you / Without a good reason indicando um caminho onde nem sempre as coisas são como parecem. “Rapture”, a preferida, vem em seguida e traz em suas entrelinhas uma comparação entre o orgasmo e a revelação divina. Outros hits, quase radiofônicos, ajudam a temperar toda a história. A pulsante “Penetration” e a incrível “Magazine”, com seu andamento bem marcado, são dois destaques.
Mas a coisa fica séria mesmo com Bazan questionando after all, what’s wrong with second best na épica “Second Best”, que ainda explode em the mattress creaks beneath the symphony of misery and cum. Tem aquela cara de música perfeita para encerrar disco, mas Bazan parece querer sufocar todos os questionamentos possíveis para depois trazer um certo alívio quando a música termina. É como uma permissão para que Control possa seguir em paz, oferecendo gentilmente o espaço para que as duas últimas músicas finalizem o disco.
O álbum ainda traz algumas outras ruminações sobre infidelidade e armadilhas da vaidade sob a visão de Bazan. É puro artesanato indie pop, daqueles feitos com carinho e simplicidade devota. Um complexo de emoções sem edições bancadas por qualquer tipo de revelação que precisa ver a luz do dia para ser expurgada de uma mente que não suportaria viver isso sozinha.
Em Achiles Heel (2004), tido pela crítica como um disco maduro, Bazan parece tirar um pouco o pé dos temas mais abrasivos. É um disco mais palatável e linear. Tão acessível quanto Control, mas sem a mesma vibração e sensibilidade.
Ainda em 2004, Bazan, já sem usar o nome Pedro the Lion, lançou Alone at the Microphone, um DVD. O filme tem trechos de entrevistas e músicas tocadas de forma bem intimista em um estúdio que ele tem dentro de casa. O set list conta com as músicas preferidas da sua carreira solo, com o Headphones, e claro, com o Pedro the Lion, que em 2005 fez seu último show em Seattle. Ainda no mesmo ano, Bazan montou e gravou um disco com sua nova banda, o Headphones, que ainda contava com Frank Lenz do Starflyer 59 e T. W. Walsh.
Em carreira solo, ele acumula três EPs e três discos: Curse Your Branches (2009), Strange Negotiations (2011) e um novíssimo, chamado Blanco, lançado no dia 13 de maio de 2016. Neste último, Bazan voltou a usar algumas estruturas menos orgânicas em estúdio, em um reencontro mais íntimo com notas mais econômicas, mas ainda infladas por uma emoção comprovada em músicas como “Both Hands”, por exemplo. O resultado é um disco bem bonito.
Lembra do terceiro parágrafo, quando falamos do poder que Bazan tem em compor canções que fazem você viver várias vidas? Talvez isso aconteça porque ele mesmo parece viver essas diferentes vidas, mas a compreensão disso depende do ponto em que você está ouvindo. Pode ser a busca pela fé dos primeiros discos do Pedro the Lion, ou um encontro com uma personalidade agnóstica em músicas repletas de esterilidade na fase quase synthpop do Headphones ou a personalidade mais segura de seus discos solos. Em todas elas há a voz que canaliza todas essas dimensões em um clima de estética quase lo-fi, daquelas fáceis de entrar e bem difíceis de sair.
Já no fim do café com leite e depois de passear sem pressa por essa bela discografia, é fácil concluir que por vezes é mais simples e fácil carimbar algo cheio de sentimento como triste do que se entregar àquela obra e tentar entender de onde ela vem, pra onde ela gostaria de ir e pra onde realmente te leva. Essa é a beleza de uma relação única e íntima com a trilha sonora que você deu as mãos e seguiu junto, lado a lado, no mesmo compasso, na mesma direção, em notas de harmonia vital.