“No início, as pessoas não sabiam o que pensar porque não tinha nenhuma outra banda fazendo aquele tipo de música que a gente estava fazendo”. Este é Jeff Becerra, que na época da formação do Possessed tinha apenas 15 anos de idade.
O quarteto formado por Jeff ao lado de Mike Torrao (guitarra), Larry LaLonde (guitarra) e Mike Sus (bateria) convivia com todas as bandas da Bay Area que estavam reforçando a importância do thrash metal naquele período. Ao lado de Exodus, Metallica e Slayer, o que o Possessed fez foi investir ainda mais na velocidade, peso e vocais urrados. A partir desses requisitos registrados na demo tape batizada de Death Metal, o Possessed inventou o estilo que dura até os dias de hoje.
Aquela sonoridade coberta por temas satânicos criada por eles era ríspida e pouco compreendida. Mais tarde, nos primeiros momentos da década de 90, o death metal ganhou adeptos que tiraram o estilo da escuridão e deram a ele um reconhecimento que o underground jamais poderia esperar. Bandas como Deicide, Obituary e Morbid Angel, que beberam no alicerce edificado pelo Possessed, chegaram a vender milhares de discos, algo também impensável enquanto essas mesmas bandas estavam na incubadora do metal morte. Hoje então, nem se fala. O death metal é algo até popular, com milhares de bandas ao redor do mundo praticando os ensinamentos de antecessores como Celtic Frost, Death e claro, antes de tudo isso, o Possessed.
No Brasil, fosse na Ledslay, Rainbow Bar, Fofinho, Officina do Rock ou em qualquer outra casa que tocasse “som de fita”, bastavam os primeiros acordes de “The Exorcist” para que grande parte dos presentes dominasse a “pista”, posicionando suas mãos nos bolsos, alguns até batiam suas jaquetas jeans no chão; fixando o tênis branco de cano alto no piso sujo e balançando a cabeleira para os lados agitando como se não houvesse amanhã.
Os últimos anos da década de 80 foram decisivos para a consolidação do thrash metal e a formação daquela nova sonoridade extrema do death metal.
Jeff Becerra (vocal) é categórico: “…a verdade é a verdade, Possessed foi a primeira banda de death metal”. Nessa entrevista exclusiva ao Sounds Like Us, ele conta muito mais sobre a criação do estilo, a carreira, sua amizade com Metallica, Exodus e as bandas da Bay Area e claro, sobre o novo e aclamado Revelations of Oblivion, um dos melhores discos lançados em 2019.
Sounds Like Us: Oi Jeff, como você está? Gostaríamos de começar nossa entrevista perguntando como você se sente lançando um dos melhores discos de 2019, o Revelations of Oblivion?
Jeff Becerra: Honestamente, este disco novo levou um tempo para ser feito e era bastante desejado por mim. Então a sensação é incrível. Claro que, ao mesmo tempo, sempre quero compor e fazer discos cada vez melhores. Mas fazê-lo foi uma ótima experiência, em todo o processo. Quando se está compondo ou produzindo um álbum, você nunca sabe qual será a reação das pessoas; portanto, há bastante expectativa antes do lançamento. Já me dou por satisfeito ao saber desses retornos positivos e de o quanto as pessoas estão gostando do Revelations.
Sounds: Como foi o processo de pensar nesse novo disco depois de tanto tempo sem que a banda lançasse um álbum completo?
Jeff: O processo de composição foi uma experiência ótima. Desta vez estou trabalhando com músicos que realmente conhecem sua arte, então foi mais fácil experimentar e simplesmente trabalhar nas músicas. Adoro escrever e meu quarto é cheio de cadernos espiral cheios de letras, poemas, ideias etc. Também mantenho um outro caderno de cabeceira para anotar caso surja algum bom pesadelo que sirva de inspiração. Escrevo sobre coisas que me interessam e tento incorporá-las o máximo que posso. Inicialmente gravamos todas as músicas numa demo para ficar mais fácil para ensaiar, aprender a tocar e procurar gravadoras interessadas. Quanto aos arranjos, gravei no meu computador as músicas que compus, de sete a 12 riffs, e as enviei para meu guitarrista, Daniel Gonzalez. Dan então refinou meus riffs e acrescentou as ideias dele para as bases e os solos, junto a uma bateria eletrônica com um metrônomo. Na sequência ele enviou por e-mail o resultado para o Robert Cadenas, que somou o baixo, e depois para o guitarrista Claudeous Creamer gravar os solos dele. Feito isso, o Dan voou para Los Angeles e captou a bateria do Emilio, gravando as batidas dele por cima da bateria eletrônica. O passo final foi o Dan vir até minha casa, onde montamos os microfones no meu porão.
Mandamos estas gravações iniciais para as gravadores e imediatamente conseguimos várias propostas. Decidimos assinar com a Nuclear Blast, que fez a melhor oferta e por ser uma gravadora incrível. Usamos estas faixas preliminares como base para o disco e gravamos cada uma das partes individuais para soar melhor. As primeiras gravações facilitaram bastante o processo no estúdio e nos deram a oportunidade de gravar a bateria primeiro, sem precisar estarmos todos lá, e permitiram que o Peter Tägtgren tivesse uma ideia sólida do que queríamos e de como desejávamos soar. Claro que o Peter é um gênio e todo o processo foi uma experiência incrível. O fato de termos gravado antes também fez com que chegássemos ao estúdio preparados e acertássemos a maioria das partes já nos primeiros e segundos takes. Foram 14 dias para gravar todo o disco.
Sounds: Realmente foi gravado rapidamente. E onde você procurou inspiração para escrever as letras desse novo disco?
Jeff: Tento tirar minha inspiração de dentro e colocar o máximo de mim possível. Mas é claro, tenho uma longa história em cantar sobre as revelações e o apocalipse iminente, Deus versus Satanás, fim dos dias, este tipo de material. Algumas das minhas letras vêm da Bíblia, outras de textos cultuais e grimórios arcaicos, além de tópicos que acho interessantes. “Shadowcult”, por exemplo, é realmente baseada no 0,5% que realmente controla o mundo. Muitas das minhas letras têm significados ocultos e ambivalentes, e também escrevo algumas delas em parábolas para que possam significar algo diferente para cada pessoa que as lê. No final, porém, é tudo death metal e você pode levá-las tão a sério quanto quiser, ou apenas curti-las. Eu estava querendo esse álbum há tantos anos (33 desde o último) que tinha muito a dizer e muito material esperando para sair. Encontrar esse material foi a parte mais fácil.
Sounds: Você acha que o Peter Tägtgren conseguiu dar um toque moderno a Revelations of Oblivion sem tirar a aura old school registrada pela produção do Randy Burns?
Jeff: Sim, o Peter Tägtgren foi incrível e deixou a aposentadoria para produzir este álbum conosco. Ele me disse que ouvia Possessed desde que era jovem e cresceu em torno de nossa música, então Peter era a escolha perfeita. Uma grande porcentagem deste disco ainda era analógico e old school, mas é claro que também aproveitamos a tecnologia moderna. Sempre tentei dar ao Possessed o melhor som possível e a única razão pela qual os primeiros álbuns soavam dessa maneira é porque tivemos que trabalhar com o equipamento que existia na época. Sempre vou tentar extrair o melhor som possível e manter isso que faz o Possessed parecer o “Possessed”.
Sounds: Contando com tudo o que você passou, como o Possessed e a música te ajudaram a seguir em frente e a continuar criando algo tão importante para tanta gente?
Jeff: Eu nunca quis que o Possessed original terminasse. E sempre foi minha intenção reunir minha banda e terminar o que comecei. Sou o tipo de cara que precisa estar em uma banda ou sinto que algo está faltando na vida. Depois que levei os tiros [Jeff sofreu uma tentativa de roubo em 1989 e foi baleado por dois assaltantes] tive momentos incrivelmente desafiadores. Muitos dias eu senti que não ia conseguir, mas nunca desisti. Depois de um tempo, decidi frequentar a faculdade para voltar a pensar em um bom lugar. Com o tempo, me senti cada vez melhor, até que finalmente achei que era hora de trazer minha banda de volta. Minha família teve um papel enorme em não desistir de mim, e o Possessed também teve um papel importante. Ao longo dos anos, recebi milhares de cartas, e-mails e correspondências de fãs do mundo todo me pedindo para “trazer o Possessed de volta”. Posso dizer honestamente que, se não fosse por todas essas pessoas e as esperanças de voltar com a banda, eu teria desistido completamente. É claro que hoje em dia, com o Possessed em turnê, minha vida está melhor do que nunca, mas devo tudo aos meus apoiadores e fãs ao redor do mundo, à minha família e aos meus companheiros de banda. Essas pessoas são a razão de eu tocar.
Sounds: Mais de três décadas depois, em algum momento entre o Beyond the Gates e esse novo álbum, você chegou a pensar em parar ou duvidou que conseguisse compor um disco inédito à altura dos dois primeiros?
Jeff: Honestamente, nenhuma. Por mais que eu realmente goste dos nossos primeiros discos, eles estão concluídos. Como artista, quero continuar fazendo novas músicas. Meus primeiros álbuns me inspiram e me desafiam a fazer a melhor música inédita possível. É sempre divertido tentar superar sua própria música, sabe? Enquanto muitas bandas acabam fazendo cópia das merdas que já gravaram, eu tento fazer com que cada álbum seja mais animal e melhor. No final, e no momento em que a música é lançada, sei que fiz o meu melhor.
Sounds: Consegue se lembrar qual foi o primeiro disco de metal que você comprou e o que sentiu quando se apaixonou pelo estilo?
Jeff: Uau, essa é uma pergunta difícil. Nos anos 70, tinha uma loja, a ASAP Record, a alguns quarteirões da minha casa. Eles vendiam singles de 45 rotações por um dólar e eu fazia o que podia para conseguir o máximo de dinheiro possível. Reciclei garrafas, entreguei jornal, fui vendedor de porta em porta de qualquer coisa, de tapetes de banho a revistas. Quase todo dólar recebido era para comprar esses discos. Além disso, eu ouvia as caixas e caixas de discos de 45 que meu pai tinha. Inicialmente, ouvi Elvis, Chuck Barry, Jerry Lee Lewis e todo o rock dos anos 50. Com o tempo, comecei a ouvir hard rock e, até onde me lembro, a primeira mega-banda pela qual me apaixonei foi o Led Zeppelin. Comprei todos os discos que eles tinham o mais rápido que pude. Ouvia e sonhava em estar no palco. Desde que eu tinha 5 anos, tudo o que sempre quis fazer foi ser uma “estrela do rock” e tocar num palco. Naquela época, ouvia UFO, Blue Oyster Cult, Aerosmith, Cheap Trick, Black Sabbath, AC/DC, Gamma, Iron Butterfly, e cada vez mais comecei a me cercar de músicas mais pesadas. Foi como uma missão, e o que realmente deu início a isso foi o Black Sabbath porque uma vez que ouvi a menção a “Satan”, vi que aquilo era o que eu queria fazer.
Eu era um grande fã dos velhos filmes de terror em preto e branco e do Creature Features, que passava sábado à noite. Comecei minha primeira banda em 1979. Naquela época, eu já estava escrevendo algumas das minhas coisas mais pesadas. De fato, escrevi minha original em 78, chamada “Hellrazor”. Com o tempo acabou se tornando a letra de “Burning In Hell” (Possessed). Também escrevi quase todos os riffs da nossa nova música, “The Word”, entre 79 e 80. Era algo que estava no fundo da minha mente. Mas, para responder à sua pergunta, as pessoas que mais me influenciaram eram geralmente os músicos com quem eu tocava em uma banda na época, ou meu primo que tocava violão e me mostrou muitos dos meus fundamentos de blues e rock, e claro mais tarde, conheci pessoas como Gary Holt e todos os caras do Exodus, além do James, Lars, Kirk e Cliff do Metallica. Kirk morava ao virar da esquina e eu costumava andar de skate até a casa dele. Então, a partir de 1980, foi tudo sobre ouvir as coisas mais difíceis e rápidas que eu pude encontrar, incluindo punk rock e thrash.
Sounds: O Possessed é a banda que criou o death metal. Muitos livros e revistas também creditam a origem do estilo a banda por conta da demo Death Metal. Você concorda?
Jeff: Mesmo antes da demo Death Metal, nos identificávamos como uma banda de death metal. Além disso, tocávamos um estilo totalmente novo, bastante diferente do thrash daquela época. Possessed foi a primeira banda a tocar no estilo OG [original] death metal e a criar o nome “Death Metal” como forma de explicar nosso novo tipo de metal. Originalmente, pensei que, ao chamar o Possessed de death metal, seríamos a única banda do estilo no mundo e isso nos separaria do resto e nos tornaria especiais. Além disso, a gente já tinha se ligado que as bandas de thrash e black metal daquela época tinham um tipo de linha imaginária que elas nunca cruzavam, como o fez o Satan [banda inglesa pré-speed metal], e dali veio a velocidade. Desde o início, queríamos ser a banda mais rápida e pesada do planeta. Pegamos o andamento do thrash, fizemos um ritmo mais rápido e adicionamos os vocais do tipo “cookie-monster”. Então o Possessed foi a primeira banda a incorporar a bateria “pop-corn machine” junto com os vocais super rosnados e o nome death metal. Lembre-se de que esse era um novo tipo de música e ainda não tinha sido aceito como parte do mainstream. Nós realmente levamos as coisas ao extremo e posso dizer honestamente que naquela época o Possessed era a banda mais rápida e pesada do planeta. Lembre-se também de que éramos as crianças mais jovens da Bay Area e nossa cena estava cheia de bandas super talentosas, então a maneira como tentamos nos destacar era sendo a mais pesada.
Sabíamos que o Venom tinha seu black metal e que Exodus / Metallica tinham thrash metal e também queríamos nossa própria “marca” de metal, por isso decidimos chamar o Possessed de death metal – ninguém usava este nome e combinava com o novo estilo de metal que tocávamos. Naquela época, era de conhecimento geral que o Possessed tinha inventado o death metal. Mas depois da minha lesão, e considerado que estive fora da cena por décadas, mais e mais pessoas começaram a afirmar ser “a primeira” banda de death metal. Imagine a minha surpresa cada vez que eu ouvia isso. Mas a verdade é a verdade, Possessed foi a primeira banda de death metal. Não estou dizendo que inventei todo o death metal, apenas que fui o primeiro. E se você ficar de olhos abertos, verá muitas bandas ainda tentando reescrever a história e diluir a verdade.
Acho que é importante reconhecer que, antigamente, falar em death metal era falar do Possessed. Com o tempo, várias formas de death metal se desenvolveram e hoje em dia temos muitas variações. Mas originalmente as primeiras bandas do estilo, como Possessed, Sadus e Morbid Angel tinham o som original de “thrashy”. O Possessed já estava em turnê como uma banda de death metal em 83 e assim que começamos a tocar, o estilo começou a se espalhar como fogo. Muitas bandas começaram a ficar mais pesadas. Nós protegemos os direitos autorais da música “Death Metal” em 83 (mesmo que tenha sido escrita em 82), apenas para colocar as coisas em perspectiva.
O Death fez seu primeiro álbum em 87. Mas antes disso, o Chuck [Schuldiner, guitarrista e vocalista] foi morar na casa de Krystal Mahoney, presidente do fã-clube do Possessed, na Califórnia, só para ficar perto de mim e do que estávamos fazendo. Isso foi logo depois que o Possessed começou a fazer shows e trocar nossas gravações ao vivo no circuito de troca de fitas subterrâneas, que era incrivelmente ativo na época. Antes de se mudar, o Chuck enviava cartas para mim. Ele foi um dos primeiros músicos que realmente se inspirou em mim e no que eu estava fazendo com o Possessed. Ele me fazia muitas perguntas sobre o death metal e o que isso significava para mim, quase como uma entrevista. Certamente que o Chuck pegou a ideia do death metal de mim, mas a partir dela criou o som do death metal da Flórida, que por sua vez se tornou tão popular que até hoje algumas pessoas só conhecem o death metal da Flórida. Mas o estilo original tinha um som thrashy porque o Possessed surgira na era do thrash de San Francisco.
Sounds: O livro Murder in the Front Row dedica algumas páginas com fotos incríveis do Possessed. Como foi acompanhar de perto o nascimento do thrash metal na Bay Area?
Jeff: A cena da da Bay Area de San Francisco foi incrível. Íamos a shows todo fim de semana para ver bandas como Exodus e Metallica, além de tocar com o Possessed em todo o circuito de casas de shows de lá. Aqueles dias pareciam revolucionários e, de certa forma, sabíamos que estávamos fazendo parte de algo novo e emocionante e que viveria para sempre. Foi um momento glorioso e especial, em todos os sentidos da palavra.
Sounds: Ainda sobre a década de 80, algumas letras de bandas da época faziam críticas ao governo de Ronald Reagan, a guerra fria e a corrida armamentista. Você acha que hoje o metal tem um posicionamento político mais definido e necessário?
Jeff: Honestamente, tento ficar longe da política. De fato faço menção a tópicos políticos, o faço de uma maneira que provavelmente se relaciona com todos nós. A política tende a dividir o público, então tento ficar longe. Além disso, o Possessed é sobre o metal foder com a política.
Sounds: O Possessed é uma banda que influenciou muitas outras. Mas e quanto a vocês, quais foram suas grandes influências?
Jeff: Tento colocar o máximo possível de mim na minha música. Tento manter o som original, mas também criar um som novo e melhor. Sou mais influenciado pelas atitudes e ações de bandas como Motorhead, Exodus e Black Sabbath. E, sinceramente, sou mais influenciado pelos amigos, familiares e músicos ao meu redor e do meu círculo do que qualquer outra coisa.
Sounds: Olhando em retrospecto, você acha que conseguiu realizar seus sonhos com o Pessessed?
Jeff: Fui muito sortudo. Os fãs do Possessed são os melhores do mundo. Então, sim, eu estou feliz. Ao mesmo tempo, ainda quero fazer música e arriscar. Há uma certa emoção vinda de fazer música do nada e esperar que as pessoas gostem do que você criou. O death metal é uma coisa tão underground ainda, de muitas maneiras, e eu realmente espero que continue a crescer.