Vinicius Castro
Quando veículo de insatisfações, contestações, revoltas ou outros sentimentos genuínos, a música se torna uma necessidade incapaz de ser contida. É preciso compor, gritar, cantar, tocar, expressar. É essa a beleza que percorre Endure, novo disco do Special Interest, banda de New Orleans formada em 2016 por Alli Logout (vocal), Maria Elena (guitarra), Nathan Cassiani (baixo), Ruth Mascelli (sintetizadores e drum machine).
Endure carrega músicas intensas. É desses discos que você ouve, pira e saí por aí com vontade de compartilhar com todo mundo. Foi o que aconteceu e aqui estamos nós.
Há na sonoridade do álbum um misto da disco music e do funk dos anos 70. A fúria do punk e o tormento do industrial também estão presentes, porém, de uma forma menos crua do que em Spiraling, disco anterior da banda, lançado em 2018. O mais legal é que em Endure todo esse encontro de referências acontece sob melodias fortes e camadas e mais camadas de uma energia que equilibra raiva e dança.
Ouça as funkeadas “(Herman’s) House” e “Midnight Legend” e tente, inutilmente (vale avisar), não se mover. É também impossível passar incólume pelas impetuosas “Impulse Control” e “Concerning Peace” – esta última, escrita durante o Black Lives Matter, traz um leve aceno ao Atari Teenage Riot enquanto a letra diz: “we are not concerned with peace. Peace is none of our concern” (nós não estamos preocupados com a paz. A paz não é uma preocupação nossa).
Em Endure o groove é contagiante. O tom intenso e raivoso é também algo presente. Chris DeVille escreveu que o vocal de Alli une algo de Zack de la Rocha (Rage Against the Machine) e Martha Wash, que gravou com o C+C Music Factory a clássica “Gonna Make You Sweat”, aquela com a famosa intro: “Everybody dance now”. Embora não seja ela quem apareça nos créditos e no clipe, Martha Wash é a dona daquela voz (saiba mais sobre essa história).
Por aqui, guardamos o mais alto elogio para “Foul”, uma das melhores do disco e uma das músicas mais legais do ano. O beat linear e o jeitão no-wave da faixa abrem espaço para um pouco da obliquidade sonora do Devo, só que aqui um tanto mais nervosa.
O inglês The Guardian escreveu que o Special Interest “ataca o mundo de frente, aumentando o volume da dura realidade da face mais negligenciada da sociedade”. É nesse lugar que o conteúdo das letras acontece. Na já citada “(Herman’s) House”, por exemplo, Alli Logout disse ao Quietus se tratar de uma “ode disco a Herman Wallace, um dos três revolucionários negros de Angola que foram mantidos presos em uma solitária por mais de 40 anos na penitenciária estadual da Louisiana.” Nela, Alli canta: “we’ll all be Basquiats for five minutes or Hermans for life…” Ainda segundo elu, em outra entrevista, “ser negro na América significa ser explorado… Ou você é totalmente idolatrado e destruído, ou é jogado em uma jaula.”
Chama atenção que em “(Herman’s) House”, aquilo que poderia parecer um contraponto, se justapõe. É uma composição que carrega um tema político pesado sustentado por uma sonoridade “pra cima”, candidata a hit das pistas de dança.
Endure encerra com a linda e hipnótica “LA Blues” e seus oito minutos capitaneados pelas linhas melancólicas de Maria Elena e Nathan Cassiani, na guitarra e baixo respectivamente, e um jeitão de The Cure (“A Night Like This”?). Como em “Foul”, aqui tudo também transcorre por um beat seco enquanto a carga emocional fica por conta dos synths de Ruth Mascelli e, principalmente, dos vocais de Alli que, ao final, canta com uma entrega de arrepiar:
Why?, why?
Now, why would you take them from me that way?
I don’t ask for nothing, I know I’ve grown cold.
Yeah, I’m a hypocrite, I’ve never known home
De Funkadelic a Cabaret Voltaire. De Sparks a B 52’s. As referências trazidas pelo Special Interest são variadas. Mas a potência de Endure está mesmo é na sua necessidade de existir, de se fazer presente e refrescar o que, aos nossos ouvidos, parecia acostumado demais.