Vinicius Castro
“After listening to your tape, all we can say is that you do for music what King Herod did for babbysitting” (“Depois de ouvir a fita de vocês, tudo que posso dizer é que vocês fazem pela música o que o rei Herodes fez pelas crianças”). Entre tantas recusas recebidas no início da carreira, esta veio em uma carta escrita por um dos selos que não estavam interessados naquela música ríspida, oblíqua e nova feita pelo Morbid Angel. De certa forma, a frase de rejeição soa até elogiosa, visto que o death metal já nasceu às margens, maldito e malvisto por quem achava que aquilo era só um barulho passageiro. Não era.
Formado em 1983 por Trey Azagthoth (guitarra), o Morbid Angel é um nome determinante dentro do death metal. Altars Of Madness, o disco que em 2019 chega aos seus 30 anos, é uma declaração do que o estilo representa. Se com o Possessed o death metal havia sido batizado, e com o Death ganhado contornos ainda mais técnicos, com o Morbid Angel ele uniu peso, criatividade e velocidade extrema.
Foi sob o calor forte e úmido da Flórida que o death metal americano construiu parte de seus pilares. Mais precisamente no Morrisound Studios, sob o comando do cara que produziu quase todas as bandas do gênero e ajudou a definir a sonoridade daquela época: Scott Burns.
De certa forma, o death metal era uma espécie de resposta à velocidade de bandas como Metallica, Dark Angel, Exodus e Slayer, que em 86 havia expandido essas fronteiras com o clássico Reign in Blood. No mesmo ano, Azagthoth gravou Abominations Of Desolation ao lado de Mike Browning (bateria) e Dallas Ward (baixo). O disco só foi lançado em 1991 porque Azagthoth não ficou muito feliz com o resultado, mas algumas das músicas de Abominations Of Desolation aparecem em Altars Of Madness.
Depois da gravação, Browning saiu da banda e foi substituído por Pete Sandoval. Na época, Browning foi para o Nocturnus, uma banda de death metal progressivo, coisa até então inimaginável dentro do universo do metal morte. A história é que Trey havia se envolvido com a namorada de Browning e isso teria gerado a treta que resultou na saída do baterista.
Sandoval vinha do Terrorizer, um dos pioneiros do grindcore, que também contava com baixista e vocalista David Vincent. Os dois, junto com o guitarrista Richard Brunelle, deram vida à formação clássica do Morbid Angel.
Altars Of Madness foi gravado com pouca grana, mas com muita dedicação por parte de cada um dos integrantes. Brunelle disse à Decibel Magazine que aquele foi um dos momentos mais incríveis da sua vida. Vincent também contou que eles trabalharam muito, muito duro mesmo para chegar àquele ponto em que a banda se encontrava e que eles, definitivamente, estavam prontos para aquele momento. Realmente, o que se ouve em Altars Of Madness é a tradução, em música extrema e inovadora para aqueles dias, da palavra plenitude. Nada ali esbarra no quase. Tudo é suficiente na medida exata, conciso e consciente. Havia uma inovação cativante que fazia com que a gente quisesse ouvir mais, mais e mais.
As músicas de Altars Of Madness são técnicas. Muito por conta da mente de Azagthoth, que sempre teve suas ambições muito bem definidas. Nos riffs, a excelência é o ponto alto, onde melodia e agressividade convivem em meio ao caos criativo. O interessante é que Azagthoth chegou a dizer que uma de suas maiores inspirações para compor esse disco vinha do Pink Floyd, uma banda distante da sonoridade do Morbid Angel.
Em seus solos, Azagthoth rompeu com todo e qualquer protocolo e criou sua própria linguagem, dando a eles uma assinatura inventiva para uma época em que, dentro do metal, se respeitava muito as progressões de notas para montar os solos de guitarra.
Entre dissonâncias e tempos quase jazzísticos, algo que viria a ser ainda mais realçado em Blessed are the Sick, a guitarra de Azagthoth sempre foi ameaçadora. As linhas criadas em parceria com Brunelle, outro grande guitarrista, em músicas como “Immortal Rites”, “Visions Of The Dark Side” e “Maze Of Torment” (que traz um dos melhores riffs), transformaram a dupla em algo equivalente a Kerry King e Jeff Hanneman (Slayer), ou James Hetfield e Kirk Hammet (Metallica).
De certa forma, Altars Of Madness é sobre superar seus contemporâneos. É um disco sobre a obsessão em ser melhor do que tudo o que estava acontecendo naquele momento nos EUA.
Durante a criação das músicas, rolou uma certa rivalidade saudável em relação às bandas contemporâneas. “Naquela época, eu realmente queria destruir todo mundo”, disse Azagthoth à revista Decibel. “Queria que as pessoas tivessem muito mais dificuldades depois que os fãs testemunhassem o que estávamos fazendo”.
Parte desse novo nível em que a música extrema se encontrava vinha de Pete Sandoval, um dos melhores e mais criativos bateristas do death metal e do grindcore. Na época de gravação, Sandoval, que vinha do grindcore, nunca tinha tocado com bumbo duplo até se juntar ao Morbid Angel. Ele disse em entrevista ao livro Precious Metal: Decibel Presents the Stories Behind 25 Extreme Metal que teve que aprender a tocar como um baterista de death metal, já que esse era um estilo ainda muito novo pra ele.
Sem Sandoval, músicas como “Bleed For The Devil”, “Damnation”, e “Blasphemy”, que, ao 1:30 de duração cria um clima de tempo quebrado e de beleza incrível, seriam apenas ótimas. Com ele, são obras irretocáveis.
“Chapel Of Ghouls” e seu andamento torto é outro grande destaque. Pesada, fúnebre, é praticamente uma valsa do inferno construída sobre notas frias e intimidadoras, suportada por um lirismo declaradamente inspirado em Necronomicon, um livro fictício criado por H.P. Lovecraft. Nesta música David Vincent, um dos vocais mais emblemáticos do death metal, canta, ou melhor, urra: The feeble church / Dead – your god is dead / Fools – your god is dead / Useless prayers of lies. Pura poesia, entoada a plenos pulmões pelos fãs do metal extremo mundo afora.
A olhos distraídos, na superfície, o death metal pode parecer um universo territorial bem definido, de limites intransponíveis e trejeitos característicos, mas é na verdade cheio de nuances e dimensões a serem exploradas. O que o Morbid Angel fez foi ajudar a validar uma música que até então não existia.
Em 1990, na Galeria do Rock, em São Paulo, compramos um VHS com um show que a banda fez em 1989, no Rock City, em Nottingham. Conseguir essa fita foi uma alegria. O heavy metal ainda vivia no submundo e o death metal dava seus primeiros passos e se colocava como um desconforto dentro daquele cenário.
Em tempos em que a economia privava os brasileiros do acesso simultâneo ao que acontecia fora do país, foi emocionante poder ver a banda ao vivo, coisa que só frequentava nossa imaginação, ou que víamos em algumas poucas fotos. A energia e a execução das músicas nesse show são impressionantes, e o encantamento foi imediato e irreversível.
Altars Of Madness conversa de perto com o nosso momento de descobertas e de desafio a tudo o que é limitador. Adolescentes na época, não queríamos reconhecer o impossível determinado pelas fronteiras, e o death metal estava lá para desafiar qualquer limite que pudesse existir. Altars Of Madness é o disco que ajudou a transformar a música extrema de dentro pra fora, e que virou a nossa vida, e o death metal, de cabeça pra baixo, como pedem seus inaugurais princípios.