Vinicius Castro
O punk é preto e ninguém tasca. Essa era a mensagem transmitida pelas figuras de H.R. (vocal), Dr. Know (guitarra), Darryl Jenifer (baixo) e Earl Hudson (bateria) quando nos apaixonamos pela banda. Imóveis em frente a uma TV sintonizada via codificador UHF enquanto, no início dos anos 90, o clipe de “I Against I”, com aquele começo emblemático, preenchia a tela, tarde da noite, durante o programa Fúria Metal, apresentado por Gastão Moreira, na MTV Brasil.
Nas esferas em que o movimento se sustenta, é impossível falar em punk sem falar em Bad Brains. Pensando bem, pela influência que exerceram, também não existe a possibilidade de se falar em rock, soul e reggae, sem falar no quarteto formado em Washington DC, uma das incubadoras do punk/hardcore americano. Se você procurar com carinho, vai encontrar um toque de Bad Brains por aí.
O leque de pessoas impactadas pela música dos caras é amplo. Em conversas que tivemos com Walter Schreifels (Gorilla Biscuits /Quicksand), Keith Morris (Circle Jerks / OFF/ Black Flag) e Ian MacKaye (Minor Threat /Fugazi), que formou o Teen Idles depois de assistir a um show do Bad Brains e do Cramps, todos compartilham opiniões apaixonadas: o Bad Brains é a melhor banda de hardcore. No fim da década de 70 e começo da de 80, MacKaye chegou a convidar o Bad Brains, sem grana na época, para ensaiarem no porão da casa de seus pais. “Ver o Bad Brains era inspirador”, disse MacKaye ao Guardian. O baixista Darryl Jenifer contou que Henry Rollins foi o primeiro roadie do Bad Brains. Vernon Reid (Living Colour) e Adam Yauch (Beastie Boys) já mencionaram o quarteto como uma grande referência em suas vidas. Em um vídeo antigo, um jovem Chino Moreno, vocalista do Deftones, não pensou duas vezes antes de responder à pergunta sobre a suas influências: “the Bad Braaains!!!”.
O fato é que depois daquele clipe de “I Against I” nossas vidas se dividiriam em antes e depois do Bad Brains até que Black Dots, lançado em 96, determinasse o ponto crucial do nosso meu pela banda.
Antes de se tornar a banda que conhecemos, o Bad Brains se chamava Mindpower e tocavam, de forma menos acelerada, músicas como “I Don´t Need It”, que foi a primeira que eles compuseram; “Regulator” e “Pay to Cum”, presentes em Black Dots.
“No início a gente não se chamava Bad Brains. Por diversas razões, nos chamávamos Mind Power. Estávamos seguindo algumas teorias que lemos em um livro (Think and Grow Rich – Quem Pensa Enriquece – do Napoleon Hill). Estávamos nos preparando para um nome que representasse aquilo que a juventude precisava” – H.R no livro Banned In DC.
Os caras piravam no jazz-fusion e, como Mindpower, tocavam covers de gigantes do soul/jazz, como George Benson. O punk chega depois, quando eles foram impactados pelos Sex Pistols e os Dead Boys. Em uma gravação de ensaio registrada em 78 dá pra ter uma ideia do que era o Bad Brains, antes do Bad Brains.
Sobre a aura que rondava o quarteto de Washington DC, Don Zientara contou em nossa entrevista que o produtor Skip Groff disse para ele:
“’Vou trazer esta banda pra cá, o Teen Idles’. Eu disse ok. Assim, ele trouxe o Teen Idles… Depois de um tempo o Teen Idles acabou e Skip disse: ‘Vou trazer essa outra banda: Minor Threat’. E ele trouxe. Ele disse que ele ia trazer uma outra banda, mas não iria acompanhar as gravações. Mais tarde descobri que era porque ele tinha um certo medo de ficar no estúdio com essa outra banda… Era o Bad Brains [risos]. Nós os gravamos e foi como se tudo desabasse” – Don Zientara, em entrevista contando sobre o medo que o produtor Skip Groff tinha do Bad Branis.
Black Dots foi inteirinho composto no período em que eles viviam juntos em Maryland. Dr.Know comprou uma casa do gerente da Rustler Steak House, onde ele trabalhava na época. H.R e Darryl também trabalhavam ali por perto lavando carros, e Earl lavando roupas para o hospital da comunidade.
“Largamos nossos trabalhos e tocamos música o tempo todo. Estávamos tentando loucamente descobrir o que faríamos dali pra frente… Estávamos fazendo o que os músicos fazem. Estávamos criando. Esta é a diferença entre se vender e ser real”– H.R no livro Banned in DC.
Black Dots foi gravado em 1979, no quintal e no porão do produtor Don Zientara, o cara que registrou praticamente toda a cena punk/hardcore de Whashington DC.
Em um dia quente visitamos Don no estúdio dele, o Inner Ear, em Washington DC. Começou a chover e ele nos ofereceu uma carona. Entre o barulho da chuva caindo sobre os vidros e conversas a respeito da cena local, Don nos levou até sua casa.
Chegamos. “Por favor, entrem”. Continuamos a conversa até que Don nos levou pra conhecer o porão onde alguns de nossos discos favoritos foram gravados. Teto baixo, paredes (hoje) brancas, geladas pela falta de contato direto com o sol e um ar típico de um porão de uma casa comum, mas que de trivial não tinha absolutamente nada. Foi difícil segurar a emoção. Há quatro décadas, naquele porão, H.R e Earl, Dr.Know e Darryl se espremiam para gravar o meu registro predileto da banda.
Saímos do porão e então Don abriu uma porta de madeira; depois uma outra daquelas com tela, apontou para um gramado de poucos metros quadrados e disse: “foi ali que H.R gravou os vocais de Black Dots”.
Por conta do volume dos instrumentos, a gravação do vocal era frequentemente invadida por outros sons. Don contou que não sabia muito de engenharia de som na época, e que o Bad Brains “usava o amplificador no volume máximo. Para captar a voz a solução foi tirar o vocalista do porão”. H.R gravou os vocais no gramado com pessoas transitando e crianças brincando e correndo pela calçada da rua.
Um dos pontos atraentes em Black Dots é que ele é um sensível e fiel registro do que é uma banda tocando ao vivo, alto, em um ambiente restrito, respirando o mesmo ar, expirando energia bruta e aspirando sonhos semelhantes.
A aura rústica do disco é porosa. A captação tem um charme, um aroma especial de época. Tudo ali é muito ao vivo. As falas de uma das filhas de Don entre uma faixa e outra, ou as conversas entre a banda e ele, como quando o Dr. Know diz: “Can you hold it for a secooooond?”, deixam tudo mais próximo de quem ouve.
“How Low Can a Punk Get?”, dona da chamada criada por Earl Hudson, irmão de H.R, inspirou a chamada de bateria do início de “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana, segundo Dave Grohl. Em Black Dots, “How Low…”, “Banned in DC”, “Attitude”, “Pay to Cum”, “Supertouch / Shitfit”, “Don’t Need It” e “The Regulator” aparecem em versões diferentes das que eles viriam a gravar nos anos seguintes.
Há uma mandinga especial em Black Dots que se revela na fúria e ingenuidade musical vivida por eles naquele momento. Em alguns momentos as inspirações são perceptíveis, como em “Redbone in the City”, onde a gente ouve ecos de Sex Pistols na maneira como H.R acentua algumas palavras. Ou mesmo no refrão de “Why’d You Have to Go?” em que a presença de “Here Today, Gone Tomorrow”, dos Ramones, é sentida.
O quarentão Black Dots ainda sustenta uma disposição adolescente que dá de ombros ao tempo. É explosivo, ríspido, nervoso, agressivo e preto, com músicas muito rápidas, donas da urgência e de um frio na barriga que só a juventude provoca.
Sobre a velocidade que a banda tocava, Darryl disse à Rolling Stone que “quando você é jovem, tudo gira em torno da competição. As pessoas estavam se baseando na velocidade dos Ramones… Nós apenas queríamos tocar mais rápido”.
No livro Banned in DC, H.R conta que, na época em que montaram a banda, lembra de sentar junto com Gary e Darryl e dizer que eles tinham que fazer algo original e pensar em algum tipo de som que fosse tão inovador que ninguém mais pudesse copiar. Eles de fato conseguiram!
Além da musicalidade, o Bad Brains também foi responsável por ajudar a plantar um orgulho tremendo e reconhecimento de identidade necessário de centenas, milhares, incontáveis pessoas negras, fãs de música, adeptas do punk, hardcore e metal, que se inspiraram a instituir, assim como o Bad Brains fez, o seu lugar de direito na música e na vida. Esse é o ponto. Esse é o Black Dots.