Vinicius Castro
“Acho que o Fight Back é meu disco favorito dentre os primeiros [do Discharge], pois é o que estávamos fazendo! Foi por isso que começamos a banda – para revidar (fight back, em inglês)!” – Tezz Roberts (Burning Britain – The History of Punk – 1980/1984 – Ian Glasper)
Vistos pelas lentes da década de 80, os limites criativos da música feita hoje em dia são menos rígidos se comparados com aquele período. Sob aquele panorama um tanto rígido, as misturas dentro do espectro do que chamávamos de rock pesado (ou pauleira) não eram facilmente digeridas. O headbanger ouvia heavy metal. O punk só ouvia punk. Os darks ouviam as bandas com sonoridade voltada ao gótico e o público da chamada new wave transitava por bandas contemporâneas ou que vieram após o punk.
A década seguinte foi mais sábia e generosa nesse sentido, encurtando as distâncias para que, independente de geografia ou linguagem, as sonoridades vindas dos cantos mais diversos do mundo pudessem se comunicar e se encontrar.
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Para nossa sorte algumas bandas ultrapassaram algumas fronteiras, escapando do arco onde foram forjadas. É mais ou menos o ato de “estourar a bolha” que se diz hoje.
Entre os nomes que conquistaram essa espécie de salvo conduto do underground entre o público estava o Motörhead, que cativou punks e headbangers e, de certa forma, semeou uma ideia de como a junção desses universos poderia desembocar em um barulho do bom. O Venom foi um desses casos e também conseguiu gravitar por esse dois universos. Punks e headbangers deixavam claro, sem qualquer receio, que gostavam da banda.
Mais adiante, um outro nome de amplo impacto foi o Ministry, que mais para o final dos anos 80 agradou ao povo do metal, eletrônico, punk e até do rock alternativo, algo que em certa medida já apontava para a reconfiguração que música pesada sofreria na década de 90.
Junto a esses nomes que ultrapassaram fronteiras estéticas, o Discharge também carrega semelhante grau de abrangência. Agradou e influenciou um público amplo, que ia do rock alternativo ao punk, anarco-punk, hardcore, grindcore, death, black e thrash metal.
A banda foi formada em Stoke-on Trent (Inglaterra), no final dos anos 70, por Tezz Roberts (vocal) e Rainy Wainwright (guitarra). Os dois chamaram Anthony “Bones” Roberts para assumir a outra guitarra, enquanto Anthony Akko e Nigel Bamford ocuparam a bateira e o baixo, respectivamente.
A sonoridade inicial respondia à temperatura daquele período e, apesar de voltada ao anarco-punk de nomes como Conflict e Crass, é impossível distanciá-los das raízes do punk rock inglês. Em faixas registradas ainda em 1977, como “I Don’t Care” e “Living in the City”, dá pra notar trejeitos vocais a lá Sex Pistols e linhas de baixo que, coincidência ou não, chegam a lembrar a vibe impressa pouco depois pelo Joy Division.
Pouco tempo depois, Anthony e Nigel deixaram a banda. Tezz foi para a bateria, Rainy para o baixo e eles trouxeram Kelvin “Cal” Morris para assumir os vocais. Foi com essa formação que a banda gravou Hear Nothing See Nothing Say Nothing e desenhou a sonoridade que contaminaria o punk e o metal de vez.
A sonoridade e a criação de um estilo
Tezz contou ao jornal The Guardian que o som clássico do Discharge surgiu quando Cal assumiu os vocais no lugar dele. De fato, o som ficou muito mais agressivo, veloz e confrontador. As letras cantadas com raiva, formatadas por poucas palavras e frases curtas, se encaixavam de forma perfeita aos vocais gritados acompanhados por guitarras enterradas em distorções cortantes. Junto a esse caos nasceu a levada de bateria criada por Tezz, que ficou conhecida como Discore, ou D-beat.
Ainda que a reivindicação de Tezz seja legítima, é importante lembrar que o andamento de bateria batizado pelo Discharge é também, vez ou outra, atribuído a outros nomes.
Há quem considere a gravação feita por de “The Hammer”, registrada por Philthy “Animal” Taylor, como uma das sementes do D-Beat. O mesmo pode ser creditado ao Diamond Head, com “Helpless”, aquela que o Metallica regravou em Garage Days. “The Hammer” foi lançada em Ace of Spades, de 1980. Já “Helpless” é parte do disco de estreia do Diamond Head, Lightning to the Nations, lançado no mesmo ano.
A ideia aqui não é criar uma competição entre quem veio antes, afinal, música não se trata disso. Mas é interessante apresentar um argumento jogando luz sobre seus pilares.
Dito isso, ouça as duas faixas abaixo e tente imaginar os vocais de Colin por cima de cada um dos andamentos:
E a coisa não para por aí. Antes disso tudo, mais precisamente lá em 1978, foi lançado o primeiro disco do Buzzcocks, Another Music in A Different Kitchen, que traz “You Tear Me Up”, uma faixa com uma sonoridade muitíssimo próxima do que mais adiante ficaria conhecida como D-beat. Dá uma ouvida:
“You Tear Me Up” veio antes do Discharge e, apesar do mérito, aquilo ainda não era uma linguagem de fato. O que o Discharge fez foi transformar o que aparece na música do Buzzcocks, de forma pontual, em uma assinatura inaugural. Nasce então o D-beat, que transforma de vez o som do Discharge, deixando as reminiscências de Sex Pistols, Chelsea e o jeitão 77 de se fazer punk rock, para um som mais agressivo que ouvimos a partir do 7″ Realities Of War (1980).
“Tu-pa-tu-pa-tu-pa? Falar de Discharge é antes de tudo falar de D-beat. Impossível dissociar um do outro já que a banda praticamente ‘inventou’ a batida torta e esquisita. Fora de tempo? Não, porque a sonoridade também é torta e por isso tá tudo encaixado, e bem acompanhado por riffs sujos, carregados de drive – aquela caixinha de abelha de que a gente tanto gosta. Ah, e claro, o vocal carregado de delay; não importa o tipo de som, a referência será sempre uma só: Discharge. Solos? Tem, mas torto também. Ainda bem! Ouvindo Discharge eu entendi que eu posso tocar mesmo sem saber, e tô nessa até hoje! Toque mal, toque alto, deixe tudo esquisito, seja esquisito e vai que vai! Se ouvir qualquer banda por aí de prefixo DIS dentro do punk, vai que a receita é boa” – Debie Molina (Pöstvmö / Tiranossaura Recs).
A arte gráfica
A importância do Discharge vai além da música. A identidade visual icônica disseminada por eles é algo tão importante quanto sua sonoridade.
Nos primeiros registros Martin H. é o artista creditado como responsável pelas capas. Recentemente ele contou sobre a sua história e a influência de nomes como Jamie Reid, autor da capa de God Save The Queen, do Sex Pistols; e de John Heartfield, um artista alemão que para Martin “foi um dos primeiros a usar a arte como arma política. Algumas de suas fotomontagens mais famosas eram antinazistas e antifascistas. Cal usou quase exclusivamente sua arte em alguns singles e álbuns…”, conta Martin.
Além dos primeiros compactos, Martin assina o emblemático logo da caveira, o mesmo usado na camiseta de Kirk Hammet (Metallica) na foto da contracapa de Ride the Lightning. Ele conta que a ideia veio de uma mistura da fivela de cintos Death or Glory com o famoso logo do Motörhead.
“Não sei se é algo planejado, tipo as artes do Crass. Mas é uma versão bruta deles e do Motörhead. Eles foram pioneiros nessa coisa que eu chamo de ‘anarco-xerox’. Era o que se tinha em mãos na época. A impressão que tenho é que a tipografia era meio secundária no caso deles. Apesar do DIY já estar comendo solto na origem do hardcore, o visual não era niilista e cru antes deles. Eu realmente identifico neles esse lance todo ‘preto e branco fim do mundo’ e isso separa o Discharge das outras bandas da época” – Rafael Nascimento, type designer.
O visual
As jaquetas lotadas de spikes e os cabelos de Cal e Garry Maloney espetados no modo “punk satélite” (nota: não sei se é o nome oficial, mas era assim que a gente chamava na época) também influenciaram uma geração de bandas subsequentes.
Na mesma entrevista citada há pouco, Martin H. lembra que o Discharge era a banda “com mais metais em suas jaquetas” e que a foto icônica de Kelvin “Cal” Morris foi tirada da forma como conhecemos porque o vocalista não curtia muito fotografias, mas topou fazer essa de costas. A imagem foi transformada na capa do 7″ Realities Of War e influenciou a linguagem visual de uma porção de bandas.
Em julho de 1981 a explosiva série de shows Apocalypse Now Tour passou por Bradford, Inglaterra. Além do Discharge, o line-up contava com o Chron Gen e outros dois nomes responsáveis pelo renascimento do punk inglês daquele período: Anti-Pasti e The Exploited.
Paul “Hammy” Halmshaw, criador do selo Peaceville, estava presente e conta em seu livro que adorou o Anti-Pasti e o Exploited chamou sua atenção. Mas foi o Discharge que explodiu tudo, e boa parte disso por conta do visual da banda. “Todos eles estavam vestidos de preto e sem sorrir. De alguma forma aquilo atingiu a minha alma. O Why, com a épica “Ain’t No Feeble Bastard”, tornou-se uma constante no meu toca-discos, e o Hear Nothing See Nothing Say Nothing consolidou o seu lugar eterno no punk”.
As letras
O Discharge foi além do “no future” e do “Hate and War” do punk inglês. Potencializou a abrasividade e despejou a sua revolta sobre temas que traziam uma visão de um mundo condenado e desolado, do ponto de vista pessoal, e das guerras e dos rastros deixados por elas.
Napalm tunbles from the sky
Cries of help and cries of pain
(“Cries of Help”)
My head is filled with fear of war
Fear and threat of war
(“Visions of War”)
Mutilated corpses and charcoal flesh
Litter the battlefields
But their dead bodies
Are not to be found
War is a black hole to avoid
(“Realities of War”)
A potência agressiva dos vocais é um ponto primordial para a transmissão dos temas carregados pelas letras que, para além do anti-guerra, atacavam também o Estado como forma de dizimação de um futur:.
We been shit on far too long
London wants is no freedom
Fight the system fight back
Fight the system fight back
Stand up fight for freedom
Stand up fight for your rights
(“Fight Back)
A influência
Essencial é um termo que cabe perfeitamente para referenciar o que o Discharge plantou dentro e fora do punk.
O impacto da banda é tão imenso quanto a falta de um reconhecimento à altura, vista a grande quantidade de bandas que foram influenciadas por eles ao redor do mundo por todos esses anos.
Max Cavalera (Soulfly/ Cavalera/ ex-Sepultura) já disse em entrevistas que nos anos 80 ele e o irmão costumavam ir de Belo Horizonte (MG) para São Paulo visitar a Woodstock Discos, clássica loja especializada em metal, para comprar LPs e fitas de suas bandas favoritas. Uma dessas fitas tinha uma gravação com o Hellhammer em um dos lados e, do outro, havia Hear Nothing See Nothing Say Nothing.
“Poucas bandas mudaram o punk tanto quanto o Discharge. E talvez nenhuma outra tenha criando toda uma estética musical, visual e discursiva com todos os elementos tão bem amarrados entre si. Além do tal “d-Beat”, ela tinha o timbre das guitarras lembrando uma espécie de motosserra (que no Hear Nothing See Nothing Say Nothing é acrescido de um chorus quase psicodélico no meio do bolo), o vocal feroz mas enunciado de maneira clara para dar a gravidade necessária aos mantras apocalípticos das letras e, finalmente, as capas, absolutamente geniais, sempre em preto-branco. Tudo isso compondo um pacote que representa perfeitamente as ‘realidades da guerra’. Você enxerga o som, ouve as artes e sabe o que ele está cantando sem precisar entender. É uma experiência sensorial completa anti-guerra, anti-capitalista e absolutamente genial. Por algum motivo, mesmo tendo criado todo um universo dentro do hardcore, o Discharge permanece pouco explicado e historicizado. O que de certa forma é até romântico. É uma banda cultuada pelos próprios punks, que espalhou sua visão e criou seu legado sem a chancela de jornalistas, historiadores e afins. E, claro: o hardcore brasileiro começou no dia em que o primeiro EP do Discharge chegou na Punk Rock Discos em algum dia de 1980 ou 81” – Pedro Carvalho (Futuro/ Dente Canino)
Em entrevista publicada aqui em 2015, o guitarrista e fundador do Ratos de Porão, Jão, contou que além do hardcore feito na Finlândia, eles também foram bastante influenciados pelos ingleses. “O que a gente conhecia eram os compactos. Era antes do Why, né. Pô, quando apareceu esse disco, foi tipo: ‘Caralho, malandro!’. Foi a época em que a gente começou a mudar. No Crucificados Pelo Sistema já tinha influência de Discharge…”
Ainda sobre o punk finlandês, em uma entrevista publicada em 2017, o então baterista do Rattus, V-P, contou pra gente que acompanhou o início de bandas como Pelle Miljoona, Damned, Sex Pistols, mas que a grande influência para eles foi o EP Realities of War (1980).
O S.O.D (Stormtroopers of death), projeto que reunia Scott Ian e Charlie Benante (Anthrax), Billy Milano (M.O.D) e Dan Lilker (Nuclear Assault), teve suas origens sob os pilares dos punks londrinos. O início daquilo que viria a ser o S.O.D foi com Scott e Charlie tocando covers do Discharge. Não por acaso, junto ao Anthrax, o guitarrista e baterista prestaram suas reverências gravando uma versão de “Protest and Survive”, no EP Attack of the Killer B’s, lançado em 1991.
Ao Louder Than Sound, o vocalista/guitarrista do Celtic Frost/ Hellhammer, Tom G. Warrior, frisou a amplitude criativa plantada pela banda, algo que ele chamou de “uma revolução” . “Quando eu ouvi os dois primeiros discos do Discharge, fiquei impressionado. Eu ainda estava começando a tocar e não tinha ideia de que você poderia ir tão longe”.
A relação com o metal extremo
“Ninguém remotamente sensato pode negar que o movimento punk é onde a música originalmente começou a ficar realmente rápida e agressiva. Bandas como Discharge e Black Flag foram os atos mais violentos do mundo no final dos anos 70 e início dos anos 80. Quando o metal começou a ficar mais brutal, ele pegou a agressividade e a velocidade do punk” – Daniel Ekeroth, autor do livro Swedish Death Metal (Bazilion Points)
Muito da intransigente maneira de explorar o campo mais extremo do metal tem seus pilares no modo como o Discharge também usou desse artifício para sedimentar uma sonoridade objetiva e direta.
Bandas importantes do metal extremo também carregam, em certa medida, alguma influência dos primeiros discos do Discharge, e muitas delas gravaram suas versões.
O Nasum, por exemplo, registrou “Visions of War”; o Brutal Truth, “The Nightmares Continues”; o Cerebral Fix, “Never Again”; e o Napalm Death gravou “War’s No Fairytale”; isso só pra citar alguns, já que a lista é gigante.
A presença em outros estilos
Antes de formar o Dinosaur Jr, J. Mascis, ícone do rock alternativo, conta no livro Choosing Death que a formação da sua primeira banda, o Deep Wound, aconteceu depois que ele conheceu Scott Helland, que também curtia Minor Threat e Discharge, em uma loja de discos. Além disso, em uma matéria do Quietus, Mascis colocou Decontrol como um de seus discos prediletos.
Josh Homme, vocalista e guitarrista do Queens of The Stone Age, também navegou pelos ruídos do D-beat. Ele contou em entrevista para a revista Spin que, junto ao GBH, o Discharge foi uma banda que teve certa influência em sua carreira, principalmente quando ele ainda era parte do Kyuss. Ele fala sobre o EP, Never Again (1984) e o quanto aquilo soava melódico e mais pesado do que heavy metal. “…era veloz, pesado, e a produção era tão crua que eu sentia que aquilo era algo verdadeiro!”, contou Homme.
Em análise mais, digamos, elásticas, dá pra enxergar a objetividade do Discharge aplicada também a sonoridades distantes. É o caso do Fotocrime, banda americana do pós-punk praticado nos dias de hoje, e que gravou uma versão muito interessante, e tensa, diga-se, de “The Price of Silence”, presente em um compacto e no mesmo Never Again, citado por Josh Homme pouco acima.
O último registro da fase influente foi o EP Warning: Her Majesty’s Government Can Seriously Damage Your Health, de 1983.
Nesse período não só o Discharge, mas bandas como Ratos de Porão, English Dogs e Onslaught, por exemplo, também inseriram elementos do heavy metal em suas composições de estética punk.
Isso promoveu uma visão menos rígida sobre a possibilidade de uma convivência entre punks e headbangers, fosse no som, nos shows ou em locais públicos, como lojas, bares e casas noturnas.
Não era o crossover como viríamos a conhecer. Era o metalpunk. Uma sonoridade bem peculiar, que surgiu e ocupou um lugar de entressafra entre a aceitação do punk pelo metal e vice-versa.
Mais do que modelar a iniciação de uma determinada sonoridade, é bonito demais o quanto uma banda pode seguir ressoando por décadas e ainda assim contar diferentes histórias, formar memórias e determinar trajetos dentro e fora do campo onde propõe sua arte.
Talvez venha daí o senso de amplitude que alguns nomes atingem sem mesmo ter pretensão de tal manobra. Simplesmente acontece. Porque certas bandas se tornam essenciais não só no fator espaço-tempo em que se revelam, mas também no dar de ombros a qualquer localização, rompendo épocas, estilos, culturas e fronteiras.