Depois de um ano mergulhados em um misto de areia movediça e maçarico desgovernamental, saímos vivos, assim como boa parte das pessoas que amamos. Mas não sem perdas. E foram a vacina, a arte e o afeto que nos deram possibilidade de olhar para as perdas e lidar com elas. De construir algum silêncio, ou de tomar palavras e barulhos emprestados para nomear o inominável.
Mantendo a tradição das nossas listas, invertemos os papéis: Vina escreveu sobre os discos favoritos da Amanda, e ela escreveu sobre os dele. Foram discos com humores bastante variados, o que reflete bastante nosso estado de espírito. Não foi à toa que, apesar de tudo ao nosso redor, esses álbuns tão incríveis nos trouxeram refúgio, satisfação e até esperança. Na autoria, bandas que conhecemos pela primeira vez, discos sucessores altamente aguardados, bandas veteranas. E a música segue sendo colete salva-vidas.
É sempre difícil fazer um recorte e deixar tanta coisa boa de fora. Mas vale o esforço de criar algum tipo de limitação pra deixar aparecer os argumentos. Esperamos que estes discos aqui sejam bem significativos pra vocês também.
Seguimos! E fora facínora!
UM DISCO EM COMUM:
Siem Reap – Now What?
Siem Reap é o nome escolhido por Gilles Demolder para assinar esse primeiro e novíssimo disco solo, lançado já no finalzinho de 2021. Gilles é mais conhecido por fazer parte do Oathbreaker e do Wiegedood, duas bandas que já apareceram por aqui em entrevistas e que estão entre nossas prediletas da casa. Now What? é o nome do disco solo de estreia de Gilles e, de certa forma, parece costurado por um sentimento (quase) coletivo acumulado em uma pergunta simples, mas que comporta uma enxurrada de sentimentos disseminados por esses últimos anos de uma pandemia sem precedentes, perdas irreparáveis e um misto de ódio, luto e desolação. Gilles parece distribuir bem essa tríade em suas bandas. Para Now What? sobram acordes tristes, músicas estruturadas sob instrumentações minimalista, quase lo-fi, e um canto íntimo, baixo e abafado, por vezes, soando até meio exposto e nervoso. Musicalmente o disco não é uma surpresa, já que Gilles tem gosto por bandas como Ride, The Cure, entre outras que fogem do universo de suas bandas mais conhecidas. O que surpreende aqui é o trajeto que ele cria a partir dessas referências e de seus sentimentos. Now What? é um álbum corajoso por se expor e íntimo por musicar o que parece não ser possível conter.
OS DISCOS MAIS LEGAIS DE 2021 DO VINA DESCRITOS PELA AMANDA:
Low – Hey What
Taí um álbum que já de cara proporciona uma experiência inescapavelmente imersiva. “White Horses”, a faixa de abertura, inaugura encontros sonoros sem qualquer diplomacia quanto à crueza, textura, granulação e abrasividade que reaparecem em outras faixas. Passa o bastão para “I Can Wait” com uma hipnotizante reincidência de notas que são ouvidas e reouvidas a partir de barulhos, modulações na voz e distorções até chegar a um límpido duelo vocal entre o casal Mimi Parker e Alan Sparhawk. Estas dinâmicas vão comparecer por todo o disco, trazendo também ao inquieto baile integrantes percussivos em contraste com vozes ora organicamente sublimes, ora futuristicamente robóticas. Um disco muito querido pelo Vina e que certamente vai tocar muito por aqui.
Dinosaur Jr. – Sweep it into Space
Engraçado que muitas vezes eu me pego cobrando do Dinosaur Jr. uma postura ruidosamente inconsequente e de canções bem exasperadas, tal qual a banda soava quando era jovem e fazia músicas para ouvintes igualmente jovens à época. Mas, que o digam nosso colágeno em gravidade e os fios brancos, não dá pra ignorar que envelhecemos, e cá estou eu achando que posso nadar contra a corrente (ai, coitada) e esperar “Budge” pra sempre! Ainda bem que o Vina amou esse disco e me provocou a ouvi-lo mais e mais. Esse trio usa a ação do tempo para refinar seu som, estancar a sangria desatada de outrora e oferecer um vívido, consistente e não menos barulhento amadurecimento, numa sonoridade que já tinha pistas na discografia, mas que agora enfatiza os arranjos mais apaziguadores. Menos urgência, mas muita permanência, como tão bem ilustram “I Ran Away”, “Garden” e “N Say”.
Inhuman Condition – Rat°God
Claro que para as pessoas que são fãs do gênero, eu devo estar falando a redundância da redundância, mas fico besta de como os discos de death metal que o Vina tanto ama estão sempre numa paradoxal vanguarda atemporalizada quanto à sua tradição de soar nossas desumanidades e retratar o desgosto de que somos tão capazes. Mas acho ainda mais interessante como as músicas parecem ter um encaminhamento propositivo quanto aos arranjos e à impressão sonora que deixam, nunca numa prostração ou sentimento de derrota. Escutando Rat°God, me vi inserida num contexto de crítica, mas com reação – sério, não existe inércia quando se escuta faixas como “Planetary Paroxysm” ou “Crown of Mediocrity”. Injeção de ânimo, pé na porta, trem descarrilado – escolha aqui sua metáfora para enaltecer o disco.
Nadja – Luminous Rot
Uou, que disco impressionante e lindamente carregado. Ensimesmado em repetições, angustiantemente contemplativo e com um aceno quase literal à catástrofe. De um cenário sonoro aparentemente caótico, podemos recortar os riffs mais sombrios, as combinações mais desconcertantes nos pedais e vocais lamuriosos que anunciam múltiplos apocalipses. Porque é esta a impressão que tive ao ouvir “Cuts on Your Hands”, uma espécie de arauto contínuo de mundos em degradação. A coisa não fica mais fácil nas faixas seguintes, no sentido de respiros ou resgates, mas talvez essa a proposta do Nadja para este 2021 de tantas turbulências e desolações.
Kosmovoid – Space Demon
Ouvindo o disco do Kosmovoid me peguei pensando se o Sam Esmail não poderia abrir um episódio de Mr. Robot (saudades, melhor série) ou Homecoming com seus habituais letreiros estourados sobre uma cena enquanto a música protagoniza toda a sequência. Essa relação multimídia fez ainda mais sentido porque o Vina contou que a banda é bastante dedicada às narrativas de ficção científica, e essa informação ressignificou bastante os loopings espaciais que então eu vinha atribuindo a um som mais progressivo. As climatizações de suspense e mistério funcionam muito bem, como nas faixas “Lower Levels” e “Terror C”. As músicas têm uma gravação bastante cuidadosa e fico imaginando que devam soar ainda mais grandiosas em um show a céu aberto.
Fosso – Solo Amargo
À exceção dos discos do Dinosaur Jr. e do Kosmovoid, os álbuns mais queridos pelo Vina em 2021 parecer ter em comum uma introspecção que, forçada pelas circunstâncias, acabou sendo a marca eleita por todo mundo que tentava entender a série de acontecimentos absurdos que dominava o ano. Mas Solo Amargo também rompe com esse circuito em alguma medida: apesar de o retrato sonoro do black metal mirar a decomposição e a crueza, ele atinge a expansão furiosa dos lamentos que emite não só pelo vocal, mas também pelos instrumentos – acho que isso fica destacado em “O Vento da Dúvida Pt II”. A ideia parece ser a de convocar para um olhar bastante crítico sobre o que fazemos com o chão em que erguemos nossa existência. A queixa de um é queixa de todos nós, assim como a degradação ambiental de uns é o esgotamento para todo um país.
Redemptus – blackhearted
O Vina tinha dito pra mim que eu ia gostar bastante deste disco e ele acertou em cheio. Peso e dramaticidade sem tempos retos, com músicas que ilustram sentimentos meio intraduzíveis como a angústia, o medo e a frustração. Gosto de como os vocais desesperados e os longos termos instrumentais montam um contraste muito pungente aqui. Destaco especialmente as faixas “Still Resemble the Silence” e “Swallow the Tears”. Post metal de altíssima qualidade, e mais uma empreitada do Paulo Rui, de uma banda queridíssima da casa, o Besta, que gravou para o Discover (assista aqui).
Papangu – Holoceno
Sempre acho muito curioso quando situam a brasilidade na música a partir de registros sonoros mais refinados, suaves ou gingados. Poucas vezes vejo referência a um DNA identificado por peso e distorção, e achei muito legal que quando ouvi o Papangu e suas misturas despudoradamente intensas, logo me veio a expectativa de que eles contribuam para alargar a paleta de referências brasileiras. O Vina gostou muito desse disco e não poderia ser diferente, já que essa banda aposta em experimentações com a própria bagagem, sem vetos ou restrições. Geralmente um desafio para bandas que desejam cantar em português, a métrica nos versos aqui serve às várias narratividades que o Papangu explora, com evidente destaque para a caleidoscópica “São Francisco”.
Mogwai – As The Love Continues
Gosto bastante de quando o Vina põe este disco do Mogwai e sinto que vou gostar de ouvi-lo ainda mais com o passar dos anos. Gosto muito do Come On Die Young, mas o álbum de 2021 não me pegou de primeira. Essa é a beleza das listas, trazer não só o que se escutou com frequência durante todo o ano, como também jogar luz sobre o que ficou de fora e gerar novas oportunidades de audição. As possibilidades de encontros são inesgotáveis, assim como é inesgotável a capacidade do Mogwai de criar atmosferas viajantes que evocam destinos interiores e também desbravamentos para o mundo. Por agora, fico com as excelentes impressões deixadas por “Ceiling Granny” e “Ritchie Sacramento”.
OS DISCOS MAIS LEGAIS DE 2021 DA AMANDA DESCRITOS PELO VINA:
Xiu Xiu – Oh No
O Xiu Xiu é um nome de descobertas constantes. Art rock, indie, experimental, pós-punk, post-rock… muito já se tentou para definir a sonoridade deles, mas nada parece se encaixar no que o Xiu Xiu faz de fato. É entrecortado, ruidoso, pesado, operístico e de uma elegância que, por vezes, os vocais misturam uma lembrança de Roxy Music com alguns clássicos do gótico inglês. Oh No tem um ar de inadequação, positiva no caso, que ganha muito com a presença de Alice Bag, Sharon Van Etten, entre outras que incorporam o universo esquisito/atraente do Xiu Xiu em viagens sonoras incríveis, entre elas, uma versão sensacional de “One Hundred Years”, uma das minhas músicas preferidas do The Cure, aqui, com a voz de Chelsea Wolfe. Aí é covardia, né Xiu Xiu…
throe – Throematism
Pelo bem da imparcialidade, não posso opinar.
The Armed – Ultrapop
A primeira impressão é de este ser um disco-retrato dos recentes anos que desafiaram, e esmagaram, a nossa saúde mental, corporal, nossa calma, nosso lidar com adversidades, nosso lidar com a perda. Se a alma grita, me parece que o caos criado pelo The Armed ocupa bom lugar entre os lançamentos desse 2021. A Amanda sempre gostou muito de Austerity Program, Dillinger Escape Plan, Daughters e o The Armed se encaixa muito nesse barulho produzido pelo o que eu chamo carinhosamente de “rock doidinho”. Entre tantos adjetivos em meio as numerosas variações de andamentos e alterações rítmicas que desenham as músicas de Ultrapop, me vem a palavra corajoso. Goste ou não, seria bobo não admitir que a audácia faz parte da bagagem do que acontece aqui. Ultrapop tem cheiro de um futuro trazido para o tempo caótico de agora.
Indigo de Souza – Any Shape You Take
Em vários momentos o disco da Indigo de Souza me lembrou Lush, discão da Snail Mail, lançado em 2018. Talvez seja por conta da semelhante aura de um impetuoso peito aberto que só a juventude consegue imprimir em canções cativantes e pegajosas, no bom sentido. Quando a Amanda me mostrou pela primeira vez confesso que não curti muito, mas ouvindo algumas outras vezes o disco soa bem melhor e já me animo com a ideia de ouvi-lo mais por aqui durante nossos fins de semana. Meus destaques pessoais vão para “Die/Cry” e “Real Pain”. Duas faixas que juntam dramaticidade, groove e uma bela produção, na verdade como em todo Any Shape You Take.
Turnstile – Glow On
A sensação de “já ouvi isso antes” é lugar comum (ou quase) no disco do Turnstile. “Tá, mas e daí?”. Pois é. E daí que a impressão é de já ter ouvido esses cacoetes em outras bandas? Os cacoetes podem ser comuns, mas o Turnstile arrisca (e acerta) em dar outras direções para esses mesmos trejeitos e incorporando novos elementos que ganham uma assinatura com a cara da banda (embora vez ou outra eu ouça um 311 aqui e ali). Em nossas conversas por aqui a Amanda me fez perceber nuances que, ainda que o resultado final não seja minha praia, tem grande valor porque é ouvindo uma banda como Turnstile que outras mais irão surgir e isso é sempre muito positivo.
Fábio de Carvalho – Anjo Pornográfico
“Pqp”! Foi essa a reação mental pouco depois de apertar o play. A Amanda tem uma antena especial que sempre aponta para o bom barulho e o Fábio de Carvalho é mais um desses gratos casos. Ela já havia escrito sobre um dos discos dele para a nossa edição de 2015 do Descobertas, e também sempre comentava sobre um cenário de artistas interessantes, de uma safra recente, renovada, vindos de Minas Gerais, terra dela, do pão de queijo, da hospitalidade sem igual e, claro, de inúmeros bons nomes da nossa música. Gostei da experiência de ouvir Anjo Pornográfico do início ao fim. É um disco de impacto.
Idles – Crawler
A gente pirou com Joy as an Act of Resistance e as conversas por aqui rondavam sobre como o Idles trouxe para o barulho um frescor de temas urgentes costurados por uma vitalidade que parece surgir de tempos em tempos pra reafirmar o quanto a honestidade na arte é algo instransponível. Daí veio Ultra Mono, e confesso que não curti muito. Mas 2021 nos trouxe Crawler, um disco consistente e diferente do que eles haviam proposto até então. É um disco “pra dentro” e isso é uma coisa que sempre me agrada. Acho que com esse álbum o Idles ampliou sua inguagem e a gente por aqui gostou bastante disso.
Tropical Fuck Storm – Deep States
Entra ano, sai ano, e o Tropical Fuck Storm sempre aparece por aqui. A Amanda já descreveu essa banda lindamente em uma matéria, então, pra saber maiores detalhes, corre lá pra ler. Mas, voltando às minhas impressões sobre a lista de discos dela, dá pra dizer que o Tropical Fuck Storm é uma banda bem peculiar. Barulhenta, autêntica e inflamável. Quando ela coloca pra tocar em casa logo me vem aquele pensamento: “Deve ser uma banda foda de assistir ao vivo em um lugar pequeno”.
Torres – Thirstier
“Acho que você vai gostar do novo disco da Torres”, foi o que a Amanda disse na época em que Thirstier foi lançado e ela tinha toda razão. Acho que uma das coisas mais legais dessas nossas listas é que, além da diversão, para escrever sobre os discos prediletos um do outro a gente ouve alguns álbuns que nos causam boa surpresa, e esse disco da Torres é um desses casos. No ano passado a Amanda já tinha destacado um disco dela como um dos mais legais e, para a minha não surpresa, olha ela aqui de novo. Thirstier vai além do rock/indie. Abraça sim essas duas coisas, mas com uma identidade interessante e eu acho isso bem rico.
King Woman – Celestial Blues
Metal viscoso. Ou post-metal-lamacento, no melhor dos sentidos. Entre os vários ataques artísticos de Kristina Esfandiari, o meu preferido é o Miserable. Celestial Blues, nascido em outro endereço, do King Woman, é sem dúvida um grande disco e foi um dos que a Amanda ouviu bastante por aqui. Entre os discos do King Woman é também o mais marcante pra mim, mas acho que isso tem relação com a minha impressão de que, Celestial Blues, soa bem próximo ao Miserable.
Meat Wave – Volcano Park
Assim como aconteceu com o Fábio de Carvalho, o Meat Wave é mais um caso com precedentes por aqui, já que eles apareceram na nossa lista de Descobertas, em 2016. É dessas bandas que Amanda coloca pra tocar alto em casa e “tira o pé do chãaaaao!!!”. O som deles tem o que há de bom no nosso querido rock alternativo do final da década de 90 com alguns temperos do noise rock. Volcano Park não foge ao que o Meat Wave já havia proposto em Incessant, outro disco que a Amanda gastou aqui de tanto ouvir. É barulho bom pra quem gosta de Nirvana, Metz, Superchunk e outras belezas mais.