Revisitando Um Clássico: Inocentes – ‘Adeus Carne’

In Bandas, Discos
Vinicius Castro

A banda mais cult do punk rock. Sobreviventes do punk. Os verdadeiros garotos do subúrbio. O Sex Pistols brasileiro. Cabe de tudo um pouco na tentativa de precisar a importância do Inocentes dentro do punk, do rock, da música brasileira e das nossas vidas.

Dez entre dez garoto(a)s punks devem, e muito ao Inocentes. Ao lado de nomes como Cólera, Olho Seco, Psykóze, Fogo Cruzado e Ratos de Porão, a banda nascida da zona norte de São Paulo inaugurou o que conheceríamos dali em diante como o punk brasileiro.

Formação do disco Miséria e Fome, com Ariel no vocal e Clemente no baixo

Outros tempos, outras percepções. O Inocentes começa em 1981, época em que o Brasil ainda sofria os impactos da explosão mundial do punk 77. Ou melhor, é a época em que o Brasil ainda tentava entender o que era, e para onde ia, aquela fúria calcada em três acordes que caíra como uma bomba de subversão e novidades no colo da juventude daquele início de década.

A ditadura ainda era algo recente na história e a truculência policial uma constante. Conselho de mãe era ” se for sair de casa, leve sempre o RG nos bolsos”. Três ou mais roqueiros, vestidos de preto, em qualquer esquina, era visto como formação de quadrilha, prato cheio para a polícia. Era um Brasil que ainda não sabia muito bem o que fazer com a liberdade e, pelos poros desse desconhecimento, o punk expurgava sua ferocidade na contramão para fincar em nosso inconsciente uma bandeira que dura até os dias de hoje.

Foto: Rui Mendes

Nesse processo de entendimento, com Miséria e Fome o Inocentes se jogou na agressividade áspera do punk rock. Em Pânico em SP, flertou com a energia melódica do movimento, assim como fizeram Stiff Little Fingers e Buzzcocks.

Mas em 1987 eles desafiaram os moldes do movimento e assinaram com uma grande gravadora para o lançamento de Adeus Carne, nosso clássico homenageado.

Junto à coletânea Ataque Sonoro e aos discos Tente Mudar o Amanhã, do Cólera; Let’s Start A War, do Exploited; Rocket To Russia, dos Ramones; e O Futuro é Vórtex, do Replicantes, Adeus Carne foi um dos álbuns responsáveis por nossa introdução no punk.

Era uma década reforçada pelo glam e o hard rock. Roupas, notas, solos, poses. Enquanto o glam e o hard rock determinavam de forma rígida onde as coisas deveriam estar, o punk vinha e botava tudo fora do lugar. E Adeus Carne foi um dos agentes responsáveis por embaralhar o nosso momento e levou nossas percepções para um outro universo.

Era 1986 quando o Inocentes assinou com a Warner e isso, em tempos onde as  gravadoras eram verdadeiros impérios inimigos da liberdade artística, significava tocar mais na rádio, ter uma distribuição maior das músicas por todo país, ter seu nome nas prateleiras das lojas de discos, garantir uma presença maior nas revistas e, com isso, a conquista da fama. Pelos radicais, foram chamados de traidores, assim como ocorreu com outras figuras que tentaram ampliar seus limites criativos e testar novos formatos. Mas o Inocentes sempre teve ética e seguiria suas convicções dando de ombros a xingamentos ou cusparadas.

Adeus Carne foi gravado com status de banda grande. A produção ficou por conta do Pena Schmidt e Geraldo Darbilly, baterista que morou na Inglaterra e chegou a tocar com David Bowie e David Byrne, do Talking Heads.

Inocentes, “Adeus Carne”. Foto: Sounds Like Us

A foto da capa do disco foi clicada na porta da monumental Catedral da Sé. No livro Meninos Em Fúria, escrito por Clemente em parceria com Marcelo Rubens Paiva, eles contam que a ideia inicial era que a foto da capa fosse feita no altar da catedral, mas não conseguiram autorização pra isso.

Entre as faixas, “Pátria Amada”, que abre o disco, pegou forte não só pra gente, mas para o momento que o nosso país vivia. Dois anos antes, em 1985, o Brasil havia perdido Tancredo Neves, nosso primeiro presidente eleito de forma democrática pós regime militar, ou seja, os ânimos ainda estavam à flor da pele. Em contraste, uma gana por manter aquela liberdade a todo custo pairava no ar. Vale lembrar também que em 1986 havíamos passado pelo Plano Cruzado e, em 1987, pelo plano Bresser. Com a economia mal das pernas, ter uma pátria amada por seu povo não era lá uma das coisas mais fáceis.

Ainda no livro Meninos Em Fúria, Clemente conta que o conceito de Adeus Carne já estava todo na cabeça dele e que foi a primeira vez que ele realmente brigou com todo mundo. “Tudo acaba em Carnaval. Tudo acaba em samba nesse país. As músicas todas tinham uma amarração. ‘Pátria Amada’ foi feita pelo Plano Cruzado. Eu tava puto!”.

Pátria Amada, é pra você esta canção
Desesperada, canção de desilusão
Não há mais nada entre eu e você
Eu fui traído e não fiz por merecer…
Pátria Amada, de quem você é afinal
É do povo nas ruas?
Ou do Congresso Nacional?

O clipe de “Pátria Amada” foi bastante veiculado na época. Forte, convocatória, e o melhor, com o apoio da gravadora, a música logo sairia do gueto punk e ganharia a simpatia do público do assim chamado rock brasil(?).

“Eu” vem na sequência. Trata-se de um poema do russo Maiakóvski que Clemente musicou dando sonoridade punk aos versos do poeta. É uma das nossas prediletas. Ainda hoje, sempre que ouvimos, não há como não acompanhar cantando alto.

Nas calçadas pisadas de minha alma
passadas de loucos estalam
crânios de frases ásperas
onde forcas esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoços de torres obliquas

soluçando eu avanço por vias que se encruzilham

Agora, voltemos para 1987. A gente sabe que isso não é uma tarefa fácil, mas pelos dias que correm, dá quase pra ter uma ideia do que era viver em tempos pós ditadura e sob a presença constante dos olhares autoritários pelas ruas. Nossos amigos fugiam do serviço militar como o diabo foge da cruz e se alistar causava medo; por isso, uma música como “Morrer aos 18” fazia muito sentido.

Clemente. Foto: Rui Mendes

Dentro e fora do Brasil, esse era um tema constante no punk. Muitas bandas cantaram sobre isso na época. Os italianos do Eu’s Arse gravaram “Servitu’ Militari”, o Ratos de Porão escreveu “Máquina Militar”, o Lobotomia “F.F.A” e o Garotos Podres, “Serviço Militar”.

O metal também fez sua parte. No clássico disco Master of Puppets, o Metallica gravou “Disposable Heroes”, que também trata sobre o tema. Musicalmente, “Morrer aos 18” é tão tensa quanto o enredo pede.

18 anos e estamos servindo
Servindo pra usar uma farda
Servindo pra limpar um fuzil
Servindo para obedecer ordens

Quem não vive para servir
Não serve para viver…

A dor que sinto
Que eu sinto
Ser humilhado e ficar em silêncio
Ser castrado e não poder gritar
Ser militar, ser militar!

“Não Sei Quem Sou” e “Tambores” ainda trazem resquícios do andamento punk rock, talvez com mais ênfase no rock do que no punk, diga-se. Essas duas são as mais experimentais, no sentido de que a banda deixou clara a procura por uma sonoridade que ainda não havia visitado.

O Inocentes também sentiu pela segunda vez o ataque da censura. “Não É Permitido” trazia as palavras “maconha” e “sexo” e foi censurada. O primeiro golpe que a banda havia sentido foi no lançamento de Miséria e Fome, que teve a maioria das músicas censuradas e acabou sendo lançado como um compacto e não como um LP, como eram os planos iniciais.

Inocentes tocando “Não é Permitido” no saudoso programa Boca Livre, da TV Cultura

“Em Pedaços” é a típica música do Inocentes, enérgica, direta e que contraria o que acontece em “Cidade Chumbo”, que ainda hoje nos parece a referência mais direta ao Clash.

Semelhante ao que acontece em “Morrer Aos 18”, “Na Sarjeta” também caminha por um andamento tenso sob um dos riffs mais pesados e atemporais do disco para que, na sequência, “Pesadelo” corrobore com a nossa certeza de que esse é um dos momentos mais felizes da carreira da banda. A letra é na verdade um poema de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, que Clemente musicou transformando-o em uma música densa e carregada com o ethos punk da década de 80!

Quando um muro separa uma ponte une
Se a vingança encara, o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra ela um dia volta
E se a força e tua ela um dia e nossa
Olha muro, olha a ponte
Olha o dia de ontem, chegando
Que medo você tem de nós

Naquele final da década de 80, musicar um poema desses, era um ato de extrema coragem e provocação. No livro em parceria com Rubens Paiva, Clemente conta que essa era uma música que ele ouvia em um disco estudantil e que o verso “Quando o muro separa, uma ponte une…” ficou martelando em sua cabeça. O poema original não traz o verso “Você me prende vivo”. Sobre isso, Clemente completa: “Eu frisei o ‘Você me prende vivo, eu escapo morto’. Ficou do caralho!”

Vale lembrar que o show de lançamento de Adeus Carne aconteceu no estacionamento do Shopping Center Norte e, nos anos 80, aquele era o destino de quase todo paulistano aos fins de semana. Como bem escreveu Rubens Paiva, o Center Norte era “o símbolo da ascensão econômica na Zona Norte”.

Promovido pela rádio 89 FM, o evento estava lotado. “Havia 10 mil pessoas no local. 10 mil fãs!”, reforça Rubens Paiva. “Tinha skatista, punk, roqueiro. 10 mil pessoas. Era a periferia”. Todos inspirados para ouvir e ver de perto os verdadeiros garotos do subúrbio.

Foto: Divulgação

O final de década de 80 foi importantíssimo para nosso entendimento do que era aquela música barulhenta e capaz de mover nosso corpo, alma e ideias de lugar, e romper com limites.

Assim como o punk/hardcore americano e europeu ganha cada vez mais registros da sua história, nosso cenário, tão rico quanto qualquer outro do mundo, também pede por esses registros e o Inocentes é parte importantíssima desse contexto.