‘Um Disco Normal’, o filme sobre as gravações do novo disco do Test

In Bandas, Entrevistas

Foto: Regis Bezerra

Durante o trailer do documentário Um Disco Normal, uma voz alerta: “Todos nós achamos um pouco demais o experimentalismo visual… está um pouco abusado essa questão dessa linguagem tão extrema no visual”.

Mas o que é o grindcore senão o romper com o padrão? O que é o grindcore senão a subversão da música? A anti-música. Ou, nesse caso, a subversão da imagem como estamos acostumados a lidar. A anti-imagem. O anti-filme, talvez. Nada que no universo do Test perca o sentido. Pelo contrário. O comum é o torto, o fora de esquadro, aquilo que ataca as sensações.

Ainda que o termo grindcore, cunhado por Mick Harris (Scorn/ex-Napalm Death), tenha surgido da tentativa de descrever a sonoridade triturante que ele ouviu no primeiro disco do Swans, por aqui algumas bandas levaram o termo um pouco além e inseriram doses de criatividade, audácia e experimentalismo.

Em medida mais pessoal, encontramos no duo formado por João Kombi e Barata sensação semelhante àquela de quando ouvimos pela primeira vez, lá no início da década de 90, nomes como Sore Throat, Agathocles, Seven Minutes of Nausea, Napalm Death, entre outras. Bandas que à sua época provocaram, romperam e instituíram suas declarações a partir dessa sonoridade triturante e subverteram a ideia de música.

Daria pra abarcar diversos adjetivos e direcionamentos pra tentar entender a forma como nasce um disco do Test. Mas, tão interessante quanto deixar a imaginação fluir, é ver como isso funciona. Ou dis-funciona. É o que mostra Um Disco Normal, filme que registra a gravação do novo álbum da banda, intitulado Disco Normal.

Barata durante o show que aconteceu depois da estreia do documentário, na Cinemateca Brasileira. Foto: Regis Bezerra

Nesse novo capítulo na história do Test, o público vai mergulhar na inventividade que costura a discografia e os shows da banda.

O filme, dirigido por Tomás Moreira e João Kombi, de comum não tem nada. Uma estética extrema costura todo o longa e o incômodo que surge em imagens aparentemente desconexas, sobrepostas, vertiginosas até, ajuda a dar a ideia do tumulto criativo que reside na mente de seus criadores.

Disco Normal. Arte por Rael Brian

Um Disco Normal teve início durante da pandemia do Covid-19. Mas, por conta do distanciamento social, Tomás não conseguiu estar presente em parte das gravações do disco para que pudesse filmar todo o processo. As primeiras filmagens foram feitas por João, registradas com um celular e em VHS, naquelas fitas já regravadas, cheia de defeitos e que ofereceram uma textura interessante para o resultado do filme.

Quando o João começou a puxar o assunto de fazer um documentário, ele me mostrou algumas filmagens que vinha fazendo com uma câmera VHS. A primeira ideia era fazer todo o filme com essa câmera. Depois ele me mandou algumas referências de imagens e vídeos com essa estética glitch e como eu tinha acabado de fazer um vídeo do Paranoia Oeste, que era um pouco com essa linguagem, entendi bem o que ele queria. O trabalho foi juntar os diferentes olhares. A ideia já estava lá: gravação do disco e filmagem com diferentes equipamentos. Mas, sim, eu dei preferência para as imagens que já chegaram com ‘defeitos’ e tentei realçar tudo isso o tempo inteiro, ao extremo” – Tomás Moreira – (diretor/editor)

João durante a captação de algumas partes de guitarra em uma estação de trem. Foto: Acervo pessoal

Ailton Lucena, que também participou das filmagens, conta que essa foi uma experiência desafiadora por conta de como a banda procura fazer as coisas de uma forma dinâmica.

A experiência é bem gratificante. Você segue o instinto e faz o que o João e o Barata pedem. Mesmo sem entender muito bem eu sei que na cabeça deles a ideia já está formatada. Não vejo como uma busca por algo diferente e sim como uma forma própria de executar as coisas ao seu modo, não ligando para opiniões alheias ou cartilhas pré-estabelecidas. E o interessante é que nada é aleatório e em algum momento tudo faz sentido. Então, tem coisas que eu já acho genial logo de cara, como O Otomanos. E outras que levei anos para absorver e entender, como O Jogo Humano. É sempre motivador poder participar dos processos, mesmo que indiretamente” – Ailton Lucena

Parte do que o baterista Barata usou pra gravar o Disco Normal. Foto: Acervo pessoal

O filme é repleto de momentos interessantes. João rege a orquestra Geek de Bertioga, convida skatistas pra gravarem um coro de vozes, capta o som de um trator em movimento. Barata mergulha na escola hermetista e tira som de latões, chapas de alumínio e também aparece gravando suas partes de bateria em lugares inusitados como uma pista de skate, concha acústica, estação de trem abandonada, embaixo de um viaduto.

Por ser um disco gravado fora de um estúdio convencional, algumas adaptações tiveram que ser pensadas e algumas dificuldades sempre aparecem.

“Eu tava com meu MP3 player que tinha uma demo ou uma versão não terminada de algumas das gravações e, dependendo da música, tinham algumas mudanças de tempo que eu precisava ignorar, ou fazer igual pra não me perder. Quando gravamos essas versões demo a gente não tava pensando que ia usar de guia para as gravações, então dependendo da música era complicado seguir no tempo certinho. Na maioria das vezes era mais fácil tentar ignorar o que eu tava ouvindo no fone. Além disso, carregar todo o equipamento sempre é uma dificuldade. Dessa vez tinha mais gente ajudando, mas é sempre uma das partes mais difíceis. Também tiveram algumas partes de bateria que eu precisei inventar ali na hora. Eu não tinha ideia que ia precisar disso, então não tava preparado. Quando rola uma coisa assim num show é mais fácil, mas se vai pro disco eu prefiro, e acho muito mais fácil, pensar um pouco antes”– Barata

A ideia inicial do Disco Normal, o álbum, surgiu da cabeça de Barata. Ele conta que, por conta do Test já ter feito muita coisa diferente, por várias vezes eles precisavam explicar suas ideias ou percebiam que algumas explicações não tinham nada a ver com o que eles queriam propor.

Às vezes a gente mesmo explicava errado. Um dia estávamos em turnê pelo Paraguai e o João teve a maior dificuldade pra explicar, em portunhol, todo o conceito do Jogo Humano, nosso disco anterior. Depois disso a gente quis fazer um disco mais simples e colocar esse nome” – Barata

João durante o show que aconteceu depois da estreia do documentário, na Cinemateca Brasileira. Foto: Regis Bezerra

O disco, que vai contar com a participação de Phil (Expurgo), Thais Blanco, Dylan Walker (Full of Hell), Marian Sarine, Iggor Cavalera (MixHell/Cavalera Conspiracy), entre outros, terá uma divulgação fora do seu tempo, correndo contra a normalidade. Esqueça Bandcamp, Spotify, Deezer, Youtube e qualquer outra plataforma de streaming. O Disco Normal será lançado apenas em formato físico.

Parece uma loucura ir contra as plataformas, mas na minha cabeça eu acho que fazendo isso eu tô divulgando ainda mais o disco. E a gente tá ligado que as pessoas dão play, ouvem 30 segundos e falam que ouviram o disco todo. A gente também vai lançar uns CDs single, tipo como era feito nos anos 90. O primeiro deles vai ser da faixa “Derrama”, que tem letra do Fernando Catatau. Além da versão oficial da música, no CD também vai ter uma versão demo, uma ao vivo, um remix e uma outra feita pelo Catatau.” – João

O processo de gravação do disco levou cerca de um mês. No início foi tudo feito à distância. Todo equipamento disponível foi usado. Uma mistura de diferentes gravadores digitais, de fitas k7, celulares, vários tipos de microfones, walkman, latões, tape loop, fitas VHS.

O Disco Normal é menos torto que O Jogo Humano. Ele é cheio de texturas, algo mais na linha do Espécies. Mas é bizarro porque quando eu comecei a fazer as bases, tinham pouquíssimos riffs de metal. Parece que eu tava fazendo samba. Tem uma das músicas que eu chamo de bolero. Mas claro, você toca com distorção, o Barata coloca a bateria, acaba virando um grind” – João

Para a composição das letras a lista de convidados traz nomes como Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Vitor Brauer (Lupe de Lupe), Tomás Moreira (Paranoia Oeste), Thiago Nascimento (D.E.R./Urutu), Claudio Cox (Giallos), Kiko Dinucci, Carlos James (Facada), Jonnata Doll (Jonnata Doll e os Garotos Solventes), Quique Brown (Leptospirose), Aran (Autoboneco), China e Jair Naves.

Em certo momento do filme João diz que a ideia para viabilizar o disco era fazer com pouco. Fazer com o que eles tinham em mãos. Mas quando o ímpeto é o de subverter a música e ultrapassar os limites do que é cômodo, esse pouco que se tem em mãos se transforma em muito.

Test ao vivo na Cinemateca Brasileira. Foto: Regis Bezerra

*O documentário Um Disco Normal já está disponível na plataforma do In-Edit TV: Clique aqui para assistir o filme

Ficha Técnica

  • Um Disco Normal: 71′
  • Direção: João Kombi e Tomás Moreira
  • Produção: João Kombi
  • Filmagens: Ailton Lucena, Kenji Matsumoto, Erik Maciel, Jeferson Tarzia, Thiago Barata, Mayumi Sato, João Kombi, Renato César, Bruno Marconato, Tomás Moreira, Yuri Naufel.
  • Montagem e finalização: Tomás Moreira
Pôster oficial da exibição de “Um Disco Normal”nos cinemas