Discografia Faixa a Faixa: Mazzy Star

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Vinicius Castro

A dose certa entre agentes interdependentes. Como uma dose de beleza que existe na melancolia. Ou melodias tristes nascidas na ensolarada Califórnia. Vocais doces diluídos por acordes simples, inteligentes e sombrios. A colisão entre os talentos de Hope Sandoval e David Roback acontece em universos semelhantes, e o resultado desse encontro atende pelo nome de Mazzy Star.

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Em seus discos, a banda sempre nos pareceu passear entre sensações construídas aos poucos, em cada álbum, música a música. Por algum motivo, o Mazzy Star não funciona em canções soltas. É sempre o disco, a história contada ali, na agulha.

Foto: Divulgação

O duo nasceu em Santa Mônica, Califórnia. Mas antes disso, Roback tocava em uma outra banda, o Opal, que chegou a lançar um disco pela gravadora SST, fundada por Greg Ginn (Black Flag) e responsável por lançamentos seminais do punk e do rock independente como Zen Arcade, do Hüsker Dü; Double Nickels on the Dime, do Minutemen; EVOL, do Sonic Youth; You’re Living All Over Me, do Dinosaur Jr., entre outros clássicos.

Durante uma turnê abrindo alguns shows do Jesus and Mary Chain, Kendra Smith, que tocava baixo, saiu da banda. Para o seu lugar, Roback convidou Sandoval. Ao fim da turnê, o Opal planejava lançar um segundo disco, o que não aconteceu. Roback falou sobre isso para a revista Uncut: “Estávamos criando muita coisa para o Opal e um dia pensamos: ‘vamos começar algo completamente novo e diferente”‘. Foi quando nasceu a primeira ideia do que seria o Mazzy Star.

Foto: Divulgação

Sandoval então pediu para que Roback mostrasse algumas de suas músicas. “Ele enviou umas cinco ou sete belas ideias de guitarra”, conta a vocalista. O material enviado por Roback veio a ser parte do álbum de estreia, She Hangs Brightly.

Voltando em nossas memórias, é interessante como o Mazzy Star avançou sobre os limites e atingiu públicos diferentes. Além do indie e do neo-folk, góticos e até headbangers falavam sobre o Mazzy Star. Talvez porque o peso daquelas músicas não acontecia por meio de distorções, gritos ou instrumentos em volume máximo. Era tudo concentrado em belas progressões de acordes e um vocal desiludido, como quem se arrasta na tentativa de encontrar disposição em algum lugar que o corpo já não alcança.

Hope Sandoval

Enquanto boa parte das bandas noventistas procuravam razão nos Stooges, Ramones, MC 5, ou nos criadores do college rock, como Pixies e R.E.M, o Mazzy Star preferia nadar nas entranhas de Bert Jansch, The Doors, Velvet Underground, Bob Dylan e Joni Mitchell.

Contrária ao rock garageiro e indie daqueles dias, a música do Mazzy Star não era repleta de berros e guitarras altas, mas era de uma angústia tão barulhenta e pesada quanto.

Dave Roback

É importante relembrar que o início dos anos 90 foi um tempo incrível para o surgimento e consagração de mulheres determinantes para o rock alternativo daqueles dias. Annie Lenox, Joan Jett e Chrissie Hynde agora tinham companhia nas FMs. Além de Sandoval, nomes como PJ Harvey, Bjork, Liz Phair, Elizabeth Fraser, Beth Gibbons e Tori Amos ajudaram a pavimentar o caminho para que outras surgissem.

Dito isso, sem elencar melhores ou piores músicas, nosso convite é para um passeio pela curta, mas intensa, discografia do Mazzy Star. Escolhemos uma faixa de cada disco, aquela de que mais gostamos ou que melhor representa aquele momento, aquele álbum. Canções que tocaram, e ainda tocam, como trilha de diversas emoções. Ou que nos acompanham na simples vontade de passar um tempo vendo ele passar.

“Ride it On”
SHE HANGS BRIGHTLY
(1990)

Respectivamente, músicas como “Halah” e a faixa título parecem carregar menções a Lou Reed, de Transformer; e a “Riders on the Storm”, do The Doors. Outro fator sintomático é que, talvez por ser o primeiro disco, as faixas de She Hangs Brightly apresentam certa ingenuidade.

Como citamos no texto de abertura, parte do disco foi pensado para o que viria a ser um novo registro do Opal, antiga banda de Roback. Talvez por isso ela não tenha muito o espírito que o Mazzy Star viria a construir nos discos seguintes, mas “Ghost Highway” tem um charme especial, principalmente pela genialidade de Roback em buscar acordes objetivos e contagiantes. É um tanto cinematográfica, carrega nosso imaginário para um clima sombrio, com riff simples, looping hipnótico e que esbarra em algo do Cramps.

Para divulgação de She Hangs Brightly, o Mazzy Star fez uma turnê com o Cocteau Twins, do baixista Simon Raymonde, que sobre essa época comentou: “David era muito sério, atencioso e não falava muito. Gostei bastante dele. Hope era super tímida. Muitas vezes havia um pouco de tensão entre os dois. Às vezes, ela era como uma tempestade no palco e não parecia curtir muito tocar ao vivo”.

“Fade Into You”
SO TONIGHT THAT I MIGHT SEE
(1993)

“Fade Into You” é capaz de fazer um dia ensolarado ficar meio sem jeito, ou sem lugar. Parece o registro de uma caminhada corriqueira, longa e reflexiva à beira-mar ou pela orla em um fim de tarde.

Foi em uma versão ao vivo, nos estúdios da MTV, que vi e ouvi o Mazzy Star pela primeira vez. O encanto foi imediato e depois daquele vídeo, quería mais daquela banda cabisbaixa e cativante.

“Fade Into You” fugiu do controle. Fez grande sucesso, ainda que Roback e Sandoval nunca tenham ligado muito pra isso. A faixa ganhou o mundo e chegou a fazer parte da trilha sonora de seriados como Desperate Housewives e CSI, e no filme Starship Troopers, de 1998.

A questão é que não há maneira de escutar “Fade Into You” impunemente. É dessas músicas que te pegam pelo estômago, torcem, retorcem e que de alguma forma duram mais que seus quase cinco minutos.

Um dos “condenados” à beleza de “Fade Into You” é J Mascis, do Dinosaur Jr, que passou a incluir a música em algumas apresentações. A música também ganhou versões de My Morning Jacket, Ben Harper, Iron & Wine, Jonah Matranga (FAR), Au Revoir Simone, Owel, David Bazan (Pedro the Lion), e até da Nena, aquela dona de um dos grandes hits dos anos 80, “99 Luftballons”, entre outros.

Tanto em “Fade Into You” como em todo restante de So Tonight I Might See, o Mazzy Star consegue, não totalmente, se distanciar do folk priorizado no primeiro disco e partir para a construção de uma identidade mais triste.

Na época da gravação do disco, William Reid (Jesus and Mary Chain) e Hope Sandoval tiveram um relacionamento. Na biografia da banda, o guitarrista chegou a dizer que quando começou a ficar com Sandoval, vivia a época mais infeliz da vida dele. Não dá pra duvidar que na música a arte também imita a vida, né?

“Rose Blood”
AMONG MY SWAN
(1996)

Apesar da linearidade na discografia da banda, Among My Swan imprime um pouco mais de requinte em relação ao clima do disco anterior e “Rose Blood” reforça essa ideia. Nem o folk psicodélico de She Hangs Brightly nem a letargia indie de So Tonight I Might See. “Rose Blood” olha em direção à simplicidade, até porque grandes malabarismos musicais nunca fizeram parte das apostas do Mazzy Star.

Everyday you can see
Changes in her hair and smile
I can wait a million days
While her smile goes away

Sandoval ainda está lá, ardida, nebulosa e, nessa faixa em especial, traz uma impostação vocal timidamente diferente e canta como quem deteriora corpo, alma e sem se importar para o que acontece à sua volta. Como se só suas palavras importassem.

“California”
SEASONS OF YOUR DAY

(2013)

Além da aversão de Sandoval aos shows, o Mazzy Star também não pode ser considerado uma banda convencional quando o assunto é a frequência de seus lançamentos. Exemplo disso é Season of your Day, lançado 17 anos depois de Among My Swan. “Estávamos sempre escrevendo e gravando. Só não lançávamos nada publicamente”. É o que David Roback disse ao Guardian sobre o hiato entre o terceiro e quarto disco.

Durante essa pausa, Roback produziu duas faixas em Central Reservation, da Beth Orton; e compôs e produziu músicas para a atriz Maggie Cheung, no filme Clean, de 2004, no qual ele também faz uma ponta. Por sua vez, Sandoval gravou com o Massive Attack, Death in Vegas, Chemical Brothers e também montou uma outra banda, o Warm Inventions, junto com Colm Ó Cíosóig, baterista fundador do My Bloody Valentine.

O Mazzy Star vive para o Mazzy Star. Nada ali parece burocrático. Quando a dupla se sentiu à vontade, Seasons of Your Day veio ao mundo e trouxe uma sonoridade mais segura e sem qualquer retoque em sua identidade. Assim como “Fade Into You” se encaixa no cinema, “California” serviria perfeitamente de trilha para filmes como No Country for Old Man (Onde os Fracos Não Tem Vez), por exemplo.

Uma música simples, como uma ode à cidade natal da banda, com Sandoval cantando sobre voltar para Califórnia, sentir o verão distante e flutuar pelo oceano enquanto faz o mesmo sobre o violão de Roback.

“I’m Lesss”
I’M LESS

(2014)

Em 2014, durante o Record Store Day, o Mazzy Star lançou um compacto com duas faixas: “I’m Less” e “Things”. A primeira nos levou para a trilha de Natural Born Killers, clássico filme de Oliver Stone. Nele, em uma das cenas, durante uma viagem lisérgica, os personagens de Woody Harrelson e Juliette Lewis deliram ao som do Cawboy Junkies em uma versão de “Sweet Jane”, do Velvet Underground. O ambiente de “I’m Less” é muito semelhante. A diferença é que nela não há a poesia descritiva de Lou Reed, que parece discorrer sobre uma cena presente. Sandoval canta palavras póstumas, de algo que não está mais por perto.

“That Way Again”
STILL
(2018)

Still traz três músicas inéditas e uma versão menos fúnebre, e mais cheia de texturas, para “So Tonight That I Might See”, originalmente lançada no disco de mesmo nome. Entre as inéditas, “That Way Again” alimenta as dimensões bucólicas conectadas ao universo do Mazzy Star, onde Roback digita suas notas que inspiram e expiram por pequenos solos econômicos. Nela Sandoval canta mais do que lamenta e isso talvez tenha deixado a música um pouco menos deprê.

Enquanto a imprensa sempre procurou uma classificação adequada, fosse ela o folk, indie, dreampop, ou qualquer outra coisa, o Mazzy Star, da forma como escutamos, sempre foi somente o Mazzy Star. O violão elegante, e ao mesmo tempo simples, de Roback. O vocal de Sandoval, que não é de longo alcance, mas tem uma beleza particular, sem alarde.

Transitar pela discografia da banda é também visitar sabores próximos, conhecidos e que, com o correr do tempo, se apresentam de diferentes formas. Cada disco com sua peculiaridade, de identidade marcante e cultuados por quem se atira às emoções que a música propõe. Afinal, é disso que se trata.